quinta-feira, 21 de julho de 2016

O pau de selfie

“Eu poderia dizer, entre outras coisas, que a cidade é feita para que possamos conversar.”
Paulo Mendes da Rocha, arquiteto

O próximo dos evangelhos morreu em algum ponto por aí no século XXI e não foi só aqui no Brasil: não faz muito que um copiloto deprimido se suicidou levando um monte de gente junto! Aqui em Porto Alegre, vamos aos extremos: tem os cretinos que deixam o carrinho do supermercado atrás do teu carro e tem o bandido que mata uma mulher em plena luz do dia, na praça em frente ao Rosário, porque ela instintivamente segurou a bolsa quando ele veio por trás e puxou-a.

O pau de selfie não é nem o carrinho do cretino nem o revólver do bandido, mas ele é sintomático: "se possível, não quero mais me comunicar ao vivo com ninguém!"; "Na Internet, abro mão da minha privacidade e falo com qualquer um; no parque, são todos estranhos perigosos!"

Se o sujeito não estiver numa situação de perigo e/ou desconforto embaixo d’água, metido numa correntada ou passando um baita frio, não tem como um mergulho ser uma experiência ruim, porque tem duas coisas ótimas que não mudam nunca: nem que o teu parceiro de mergulho queira, ele não consegue falar contigo, é quase uma hora de silêncio de rádio com o resto da humanidade, e também lá o demônio da gravidade, que tanto atazanava o Zaratustra de Nietzsche, perde seu poder: se fizeres tudo certo, terás flutuabilidade neutra. Eu tiro ainda outro prazer: estou autônomo, carrego comigo até o ar que respiro! Coisas de um cara que no fundo é um bicho de concha...

Por outro lado, gosto do papo até com o cara atrás do balcão da lanchonete de um posto de gasolina perdido no meio do nada na Bahia, que me contou os últimos dias do Lamarca, fuzilado perto dali, na propriedade de um primo seu. Aliás, mais uma vez: não poderia viajar sozinho de moto oito mil quilômetros pelo Brasil se não contasse com o próximo.

Sociedade e civilização não são a mesma coisa. Os nômades do Saara e os ianomâmis vivem em sociedade, mas não são civilizados, porque civilização, desde sua própria raiz, é viver em cidades. Fazemos isso desde o começo da agricultura, que nos permitiu acumular excedentes de alimentos, porque acreditamos que é mais vantajoso, por várias razões, mas foi também a partir da vida nas cidades, onde havia mais gente do que um grupo familiar expandido, que se fez necessário escrever códigos, pautar a convivência, em busca de um mínimo de harmonia. Cada vez que encontro um carrinho de supermercado atrás do meu carro, sinto que as condições de convivência estão se deteriorando, que o onipresente “foda-se o outro” está minando o sentido da vida civilizada.

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