domingo, 24 de julho de 2016

Coices de porco

Coice de Porco I

No baixo de lá da estrada, a Veia e o Menino vão pipocando numa carroça tirada por dois cavalos. No acostamento de cá, vai o Ciclista. Lá pelas tantas, passa por outro vivente de bicicleta e saúda-o. O tipo responde, e chama a atenção do Ciclista o estado de desarranjo dos dentes dele: quantos faltam? Quão tortos estão os remanescentes? O Ciclista passa pelo vivente e continua.

Mais adiante, para sua surpresa, já estão a Veia e o piá na carroça, agora no baixo de cá da estrada: o Ciclista não viu quando eles atravessaram a estrada nem quando o ultrapassaram. A Veia toma coragem e pergunta ao Ciclista: "O senhor não viu meu marido por aí? Ele vinha de bicicleta, aí por cima da pedra…" O Ciclista, pra confirmar se o Marido da Veia era o vivente que viu na outra bicicleta, só poderia fazer uma pergunta do tipo: "Aquele quase careca, meio sem dente?" Percebe a tempo a ofensa contida na pergunta hipotética e decide não a fazer. Responde: "Não, senhora, não vi, não sei onde ele pode estar." A Veia faz uma cara desconsolada, não entende como o Ciclista não viu o Marido, mas aceita a negativa.

O final é feliz: quando o Ciclista está encostado em uma placa da estrada, descansando e tomando água, exausto por conta do vento contra, passam a Veia e o Marido na carroça, "por cima da pedra", com o Menino pedalando atrás, faceiro na bicicleta.

Coice de Porco II

O Ciclista em férias chega à pousada no meio do deserto. Começa a acertar seu pouso com o Hospedeiro, que vai anotando seus dados num caderno encardido com uma letra de criança, que é a letra dos semianalfabetos. Vê as panelas e o ambiente que sugere um comedouro. Pergunta se haverá janta. Como vai ter, cai na asneira de comentar que é bom, porque então pode jantar ali mesmo e pagar o pouso e a janta com o mesmo cheque, que é o seu último. O Hospedeiro responde que a pousada não trabalha com cheques. O Ciclista, que sabe que está a mais de 35km do fim do deserto, sente o bafo na nuca e a unha do dedão no calcanhar. Resigna-se: regra é regra. Aí o Hospedeiro faz merda: pergunta desde quando o Ciclista tem aquela conta do cheque no banco. O Ciclista responde que deve estar impresso na folhinha, e tira-a da pochete. São quase dez anos, e trata-se de um cheque especial. O Hospedeiro pega a folhinha na mão, olha-a, só falta cheirar, e comenta: "Mas tá muito feio esse teu cheque, assim nem o banco aceita!" E invoca o Ser Supremo: "E tem o Patrão, se eu aceito isso, depois ele cobra de mim…" O sangue do Ciclista ferve, um cheiro de arbitrariedade enche o ar, mas o cara se controla.

Mantendo a calma e a politesse tanto quanto possível, o Ciclista monta na bicicleta e se vai. Na hora de montar, em frente às mulheres da pousada, resiste à última tentação: repetir o gesto dos apóstolos, depois imitado por Antônio Conselheiro nos sertões da Bahia, de sacudir a poeira das sandálias à porta das cidades que os rejeitaram, significando: "Daqui não quero levar nem o pó!" Percebe, porém, que o próprio gesto seria pérolas aos porcos naquele deserto, e parte em silêncio, sem sacudir a poeira dos Reebok, que, aliás, pouco ou nada têm a ver com sandálias apostólicas.

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