domingo, 10 de julho de 2016

O Búfalo da Justiça

É uma terça-feira, dia do Willy Walentz Trio no Café Lautrec. A banda do Willy é um trio de gringos, mas eles praticamente só tocam jazz partindo de música brasileira. Poucas coisas em WDC foram tão boas pra minha cabeça, ouvidos incluídos, quanto as noites de terça no Lautrec. Quando o bar entrou em reformas, sem prazo para conclusão, deixei de ir. Só que chego de viagem na terça, mal-humorado, lembro que é terça e decido ir ao Lautrec de qualquer jeito. Quem sabe já reabriu? Desilusão, o bar tem muito mais cara de coisa que fechou pra sempre, for good, corvo do Poe, estas merdas. Respiro fundo e continuo subindo a calçada da 18, pensando em onde andarão o Willy e cia.

O bairro em que fica esta parte da 18, cheio de cafés e restaurantes das mais diversas culinárias, espelho da diversidade cosmopolita desta cidade relativamente pequena, chama-se Adams Morgan. Há um clube que usa o bairro para um trocadilho: Madam's Organ. Na janela que dá pra 18, um neon diz: "Sorry, we are open", outra brincadeira com o letreiro comum que diz: "Sorry, we are closed". Por aí, espero passar a ideia de um lugar que tem um senso de humor autodepreciativo.

Entro no Madam's Organ, porque alguém vai tocar delta blues. Mais tarde descubro que o alguém é só um cara, voz e violão (é, meus amigos, parece que delta blues pode prescindir da guitarra elétrica...). A seleção natural, porém, garante que até um voz e violão tem uma qualidade muito acima da média brasileira. Das coisas boas nesta terra: se alguém vai fazer música em público, não tem erro: pode apostar na qualidade. Seleção natural no más. E, como a tecnologia barateou a difusão musical, mais ou menos à Gutemberg, claro que o índio tem o seu CD.

Dentro do bar, obtenho a grito uma Heineken. E nada de lugar no balcão. Depois de quebrar a cara no Lautrec, esse ambiente vai comendo meu escasso entusiasmo. Até que arrumo um espaço pro cotovelo no balcão, coisa das mais importantes nesta situação. O índio solitário começa sua apresentação. Fico meio perdido, olhando pro teto e pras paredes. Das coisas deste boteco, a confusão que vai pelo teto e pelas paredes, o que faz com que meu olhar não seja o de um catamoscas. Por exemplo: pendurados com fio de nylon, um marreco e um faisão, num voo improvável, com possibilidades de colisão, dependendo do vento. Um torso de veado, patas dianteiras incluídas, colocado na parede de cabeça pra baixo. Uma cabeça de urso. Um pelego de urso. Um trompete do tempo do Bix. E a garçonete em Marte, perdendo dinheiro, fazendo merda, mas me mantendo as Heineken geladas. Um cara alto vem pagar a conta no balcão, dá zebra com o cartão dele, a coisa começa a realmente demorar demais, e o tempo todo o cara na minha frente, fodendo minha visão do índio solitário, quase pisando no meu pé, a distância mínima regulamentar violada, vou juntando pressão. Finalmente, a coisa se resolve e ele se manda, antes de eu perder a paciência com a falta de desconfiômetro.

Pelo bar, vai e vem um borracho que, inevitavelmente, me faz pensar, com saudade, no Elias. A garçonete tenta comprá-lo com cinco dólares pra ele se mandar, mas ele sabe o valor da opção e não arreda, continua indo de roda em roda, incomodando um pouco, fedendo bastante. Uma dupla se manda, vagam tamboretes no bar e eu me instalo. Começa a melhorar. O índio solitário parece não cansar e segue cantando. Antes de cada canção, dá informações sobre quem gravou a música antes e outros comentários interessantes, tudo de memória. Nota-se que o cara leva delta blues muito a sério. Cada louco com a sua mania. Entra um trio maluco: duas gurias que podiam ser de Saturno com um cara igualmente estranho. Despudoradamente, pedem-me pra mudar de banco, ignorando o poder da inércia e o mau humor que acarreta cada violação desta força da natureza. Resolvo ser um cucaracha do bem e mudo de banco sem chiar nem mandar ninguém paputaquiupariu!

Mas, até que enfim, tô bem instalado: ninguém mais vai sarnear e a cerveja vai fluindo via uma garçonete porraloca mas simpática. E é então que o meu olhar se encontra com o olhar do búfalo. Tem só a cabeça empalhada na parede, em cima da porta de entrada, à direita do palquinho. Encaro o búfalo e penso que, afinal, depois de tanta encheção desde Houston, estou bem instalado e servido. E o búfalo me devolve a mirada, com aquele ar sério, bovino, dos búfalos. Lá pela quarta Heineken, é quase natural que me venha a frase: o búfalo da justiça. Símbolo do esforço recompensado. E é aí que o sombrero grita. Tem que gritar, porque é vermelho brilhoso com tachinhas metálicas. Puseram um sombrero mexicano, de festa no gala gay mexicano, sobre os cornos do pobre búfalo! Moral da história: nunca leve nada a sério, nem o grave olhar do búfalo da justiça. É mesmo tudo uma palhaçada. Demócrito na cabeça.

Não acaba aí. Da parede, o búfalo da justiça vê uma oriental entrar sozinha no boteco, pedir um copo de tinto, despachar um oligofrênico que entra de sola e a convida para sentar-se à mesa onde ele está com um grupo de amigos, e fincar pé na minha frente. Vejo que não é o primeiro copo da noite pra ela, vejo que não é de sola que se entra no jogo dela e dou um tempo. Ela não dá nenhum sinal de que vai mudar de lugar, o búfalo é minha testemunha. Bem sentado e incomodado, levanto e digo pra ela pegar o banco. Ela faz de conta que não ouviu/entendeu, pensando (aposto!) que eu também ia dar-lhe uma solada. Fico quieto, olhando pro índio solitário, que vai desfiando seus blues. Ela acaba sentando. Como eu não falo, ela acaba puxando assunto. Em pouco tempo, sou guardião oficial da bolsa e do casaco, que ela abandona a cada cinco minutos pra tirar água do joelho. Ela é coreana, três anos de US, um inglês tão ruim que nem entende o que digo, coisa que só vi entre coreanos, estudando pra ser solution provider da Microsoft. Papinho vai, papinho vem e ponho Au Pied de Couchon na roda, dos poucos after-hours de WDC, claro que sem álcool. Ela não diz nem sim, nem não.

Alguém começa a dar corda no borracho. Ele tira, não vi de onde, dois cartões enormes, onde há duas pinturas que fez, e as expõe perto do palquinho. A da direita lembra um rosto de cristo daqueles rostos serenos do tempo da Galileia, antes da loucura final em Jerusalém. A da esquerda é um rosto de susto, dramaticamente exoftálmico. As duas tem contornos? fundos? à Pollock: aquela zorra de espirros pretos que a gente fazia nas aulas de educação artística com têmpera diluída e um canudinho de refrigerante. O búfalo da justiça, mesmo debaixo do seu chapéu de palhaço, mantém a mirada séria. O exoftálmico me dá um outro olhar, um olhar de pavor que a gente só imagina a partir de certos contos do Poe, corvos à parte. Pela segunda vez na noite, as Heineken e eu pensamos em comprar uma obra de arte alternativa. Impressionado, pergunto à garçonete o nome da figura. Sasha. O trocadilho vem fácil: é o Sasha da cachaça. Quando o índio solitário volta ao palquinho e recomeça a música, os quadros do Sasha perdem o interesse e ele me envergonha: cuidadosamente guarda sua obra, coisa que eu jamais conseguiria.

Ao fim do show, cortam também o trago e começam a nos correr. Informo que vou pegar um táxi pro Pied. Ela hesita, está de carro, duvida, repensa, encontra uma solução intermediária: convida outro cara, que havia puxado assunto com ela nos últimos minutos, pra ir junto. Eis aí o importante da história: em WDC, vila cosmopolita, é possível juntar uma coreana, um nativo e um brasileiro e encarar um omelete às duas da manhã. Em Houston, isso não vai acontecer nem se for planejado, muito menos por acidente, como foi o caso. Ou talvez não tenha sido: talvez tudo tenha sido obra do búfalo da justiça. Quem sabe?

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