domingo, 31 de julho de 2016

Gil

Na primeira noite, houve uma festa que me levou de volta a Mumbai, num processo que continuou na segunda noite. Era a festa de boas-vindas da Babels a seus voluntários de todo o mundo, que chegaram para participar do V Fórum Social Mundial.

O local escolhido não poderia ser melhor: atrás do armazém A-7 do porto, em seu cais, montaram-se a estrutura de som e dois bares. Tivemos, portanto, a rara oportunidade de estar à margem do Guaíba na região central de Porto Alegre, uma cidade acusada, justamente, de ter voltado as costas ao Guaíba, de havê-lo marginalizado, ao construir um muro para separá-lo da cidade, o maldito muro da Mauá. Da beira do cais, então, tínhamos a visão da cidade desde suas águas, quando o que quase sempre fazemos é o contrário, é procurar um ponto da cidade para ver o sol se pôr no Guaíba.

Para quem se lembra do post sobre Mumbai, aquela noite de babelitos irmanados começou na apresentação do Gil, que foi a penúltima no IV FSM. Desta vez, tudo começou mais cedo. Na primeira noite, estávamos à beira das águas de Porto Alegre, as mesmas pessoas de boa-vontade que vêm voluntariamente de todos os cantos do mundo (pra não acharem que é exagero: tínhamos voluntários do Líbano e de Israel, do Senegal e da Coreia) para ajudar outras pessoas de boa-vontade a se entenderem melhor. E desta vez não havia a terrível poluição de Mumbai, pobre cidade que não vê seu céu, então tínhamos sobre nós uma maravilhosa lua cheia, espelhada nas águas do Guaíba. Começaram os encontros! E o Gil nem cantara ainda, só ia cantar no Anfiteatro Pôr do Sol na noite da abertura oficial do V FSM, numa festa que prometia estender-se pela madrugada até a hora em que a música do Manu Chao viria fechá-la. 

Estávamos tão felizes! E o Gil nem tinha cantado ainda...

sábado, 30 de julho de 2016

Velsos I

Diz a lenda que Ary Barroso, que era flamenguista roxo, comandava seu "Calouros em Desfile" e apareceu-lhe um sujeito grandalhão, vestido com uma camisa do Fluminense, para cantar. Quando Ary perguntou-lhe o que ele ia cantar, respondeu: "Uma musiquinha nova aí, 'Aquarela do Brasil'". Imaginem o humor em que Ary estava a essas alturas do campeonato, mas deixou o barco correr e o calouro meteu-lhe bala, desafinado e esganiçado como ele só. Quando chegou lá, cantou: "Vou cantar-te nos meus velsos..." E aí foi demais pro Ary: "Pode parar! O senhor pode cantar nos seus 'velsos', mas nos meus versos o senhor não vai cantar!"

Pois então... Amigos honestos me aconselharam: "Cara, pega teus versos e coloca no fundo da tua gaveta mais funda, porque não dá, não é a tua praia." Não acho que eles estão errados, se vou fazer com vocês a judiaria de publicar alguns nesse blog é mais para aumentar a diversidade dos textos do que outra coisa. E não fica tão ruim assim pra vocês: quando o título for "Velsos", é só pular o post!

ADVERTÊNCIA
Nunca entendi a cadência do verbo
Jamais dominei o ritmo do verso
Posso contar a métrica
Mas me esqueço das tônicas
Se meu verso não é mudo,
Coitado, nasceu surdo.

                                                                       ***

Receita
para escrever Guardanapos:
Nego tem de perder as papas
                                  [da língua
Tem de perder até os papos
                                  [com os amigos:
Só a solidão escreve Guardanapos!

                                                                       ***

No fim do caminho, há um ego
que, coitado, já está no prego
Já não dão por ele nem uma tampinha
da Branca de Neve
Já não há quem leve
Esta mala pra casa.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Verbetes II

Morte lenta

Terra dos Ventos sem Nome, numa dessas madrugadas em que o polo já nos manda algum frio: o casal sai da festa com fome e agora, depois da temporada de verão, são poucas as suas opções; decidem comer um cachorrão, mais conhecido como Morte lenta. Caminham abraçados até o quiosque na esquina da igreja, entram na fila, fazem o pedido, recebem a ficha e esperam. Esperam ao relento um Morte lenta.

O cara é chato: gosta da sua mostarda, na sua casa, então apanham os lanches e caminham as poucas quadras que separam o quiosque do apê. Ela leva os lanches quentes, ele, as latas frias de refri.

Sentam-se à mesa da sala: pratos, um rolo de papel-toalha, copos e o imprescindível tubo de mostarda. Comem avidamente, em silêncio. Cada um devora seu Morte lenta.

Assim vai a relação: depois da festa da paixão, uma morte lenta, que esperamos no escuro e no frio.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Encontros felizes

Para quem segue o percurso, “Noite Estrelada” está uma sala antes de “O Arqueiro”, no MoMA. Ver “ao vivo” este Van Gogh é algo: ali estão aquelas pinceladas que dão vontade de tocar, de seguir o contorno de cada uma com o dedo. Salas antes, há uma “Tête de femme” do Picasso cujo cabelo é impressionante: não tem nada com Medusa, mas tem mais força do que um ninho de serpentes. A pequena sala do “Goya Negro”, no Prado, é outra dimensão dentro do mesmo museu. “A Onda”, de Camille Claudel, no Museu Rodin.

Por não saber que ele tinha sobrevivido tantos séculos e que estava lá, quase caí pra trás quando dei de cara com o pequeno monolito negro em que está gravado o Código de Hamurabi, no Louvre.  O enorme disco de pedra do calendário Asteca, no Museu Nacional de Antropologia. Os painéis em bronze que os ingleses tiraram do panteão de Atenas e que estão no Museu Britânico: num deles, há uma veia saltada na barriga de um cavalo que também dá vontade de seguir com o dedo, até porque quem conhece cavalo conhece aquela veia, que salta na hora do esforço.

A Catedral de Brasília e o Guggenheim de Bilbao e os profetas de Congonhas e o anfiteatro romano de Lyon... Karnak impressiona, mas o pequeno Templo de Luxor, que se liga a Karnak por uma avenida margeada por esfinges, pela qual desfilava do primeiro ao outro a procissão de Amon Min, o pauzudo, mais ainda: é de uma beleza...

Ver Stanley Jordan tocar seu Stanley Touch no Theatro São Pedro, ouvir Leo Gandelman num sopranino duelar com Frank Solari, depois já ter duelado com Borghettinho, na OSPA; Hamilton de Holanda tocando numa roda de gaiteiros no Vitrine Gaúcha, também meio que num clima de duelo, um de cada vez, e tantos monstros do jazz que tive a oportunidade de ver tocar... Em termos de grata surpresa, lembrei agora de Esperanza Spalding: já tinha um CD dela, mas ao vivo... Deve ser das pessoas mais inteligentes que caminham pelo planeta.

Embaixo d’água: num mesmo mergulho noturno em Bonaire, a primeira sépia e depois a surpresa de ver aquele monte de camarõezinhos azuis subirem na minha mão e beliscarem, até me dar conta de que ela estava numa estação de limpeza. No Portinho do Brás, onde não se pode mais mergulhar, os minutos que passamos brincando com um polvo, interessadíssimo numa casca de siri que o Hique usava para toreá-lo. O dia em que eu era o único cliente, o divemaster desceu na frente e um golfinho brincalhão me acompanhou ao longo de todo o cabo do ferro. A tarde que passamos, só de snorkel, nadando com os filhotes de leões marinhos. E, claro, o momento em que aos poucos vem saindo da água turva aquele ônibus que é um tubarão-baleia.

Aquela noite na Terra dos Ventos sem Nome, no meio de um torneio de truco, em que ela mordeu um pêssego bonito e eu nunca quis tanto ser um pêssego... A madrugada de março em que saímos ensopados de suor de um baile no CTG Mate Amargo, corremos pra praia, entramos no mar, e a água estava tomada por Noctilluca: nosso rastro era um rastro de estrelas e as ondas brilhavam e o nosso abraço nu foi Comunhão.

Todos esses foram encontros que me enriqueceram, mas de certa forma estavam lá antes. São diferentes de uma janela que se abre e te mostra a liberdade do outro lado.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Janelas

Em ordem cronológica:

Ao redor de 1988, li “O Jogo da Amarelinha”, do Cortázar. Caiu-me o queixo: dá pra fazer isso com a estrutura narrativa de um livro? Quando comprei o mesmo livro no original, “Rayuela” virou meu livro de cabeceira por muito tempo. Anos depois, li “Avalovara”, do Osman Lins, que mostrou uma estrutura narrativa ainda mais interessante, mas foi o livro do Cortázar que abriu a janela.

Por volta de 1992, finalmente enfrentei “Grande Sertão: Veredas”. Caiu-me o queixo: dá pra fazer isso com a língua?

Deve ter sido em abril ou maio de 1998, lembro tão perfeitamente do momento: eu ainda não tinha me convertido ao Diskman, andava com um Walkman que também tinha rádio, estava sintonizado numa estação que só tocava jazz, fazia um dia lindo, comprei na cafeteria da universidade um pote de sorvete, desses médios, para comê-lo todo antes de nadar, e saí caminhando em direção à piscina; justo quando saí de um longo corredor para um terraço, quando entrei no sol, começou a tocar “Nutty”, do Thelonius Monk, com ele ao piano e o Coltrane no sax tenor, e aí abriu-se a janela da música: o que é isso? Que diálogo lindo é esse? Dá pra fazer isso com um piano, que às vezes parece que gagueja, às vezes é dissonante?

Essas janelas, mais do que me mostrarem uma coisa linda, mostraram-me que do outro lado delas, na rua, no sol, as formas são livres.

Não tive uma sensação comparável em outras artes. O mais parecido foi com  “O Arqueiro”, do Kandinski, que está no MoMA.

Só pra não dizer que não falei disso: essas janelas também se abrem no tatame, mas não tô aqui pra falar de intimidades...

Caçada

Escrito na biblioteca de Georgetown em 1998:
 
Y te busqué por estes corredores inundados de silêncio...

Estes corredores submersos no oceano de silêncio, corredores do labirinto borgiano, paredes de livros, e não estavas... Talvez teus horários, que ainda não aprendi, sejam outros. Talvez tenha sido uma notícia grave o que te fez passar tão apressada hoje em meio à minha manhã de sonho — por alguma razão, perdeste a primeira aula! Não importa: etologista aplicado, hei de aprender teus horários, tuas preferências de sol e de sombra, tua hora de beber água. Aprender teus horários será o primeiro passo para apreender tua essência. Os cheiros que te atraem me levarão aos teus cheiros; as letras que te agradam te trarão às minhas letras e os filmes que te encantam serão tua entrada para o cinema dos meus sonhos.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Sensações

Eles voltavam dos molhes pedalando pela praia da Terra dos Ventos sem Nome. Em frente às ruínas do terminal turístico, foram colhidos pelo temporal: o vento, que até então vinha do mar e era ligeiramente a favor, levantou de um segundo para o outro, que é a beleza dos temporais, rondou e soprou de Sul com vontade. Junto com o vento forte veio a chuva, chuva guasqueada a vento, açoitando o casal incauto. Ela não aguentou pedalar contra tanto vento, nada via, porque as guascas d'água machucavam-lhe os olhos, e já sentia dores no seu sensível ouvido esquerdo. Sofreu, a bela companheira!

O casal saiu da praia na primeira entrada para o balneário e pedalou até o apartamento dele. Lá, sob um chuveiro maravilhoso, tiveram a felicidade que é redescobrir os prazeres de um banho a dois, depois de tanto tempo. Uma bela bimba e a sensação de terem feito amor, ou de terem andado muito perto disso.

                                                                              ***

duas flechas que formam uma flecha
dois amantes que formam — o quê?

Tem de ter a ver com eletricidade — geração, acumulação e descargas. Podemos pensar em dínamos, mas dínamos são pesados, e o amor é leve. O amor é, ou antecipa, a fusão a frio. Não que o tenhamos inventado — paro para pensar na primeira foda completa em seus elementos: corte, agarramento violento, alguma espécie de penetração e a triste separação depois do clímax: omne animal triste post coitum.

domingo, 24 de julho de 2016

Macedonio

Uma das coisas a que me propus foi não fazer deste blog um amontoado de citações. No entanto, voltando a "Todo y Nada", do porteño Macedonio Fernandez, tropecei num textículo que conversa com o que escrevi no fim de "A Condição Humana" e não resisto a copiar os dois primeiros parágrafos:

"Hay que enseñar a creer, pero más aún a no creer.

 Para que haya en cada uno un poco de bondad hacia todos es necesario que no se crea que hay mucha. El hombre que se desvive por la humanidad y aun por su patria, es una mentira; lo verdadero y lo que se necesita y basta para que todo ande bien es querer mucho a sí mismo, su familia y amigos, algo a sus vecinos y la ciudad, un poco de algo a su país, casi nada a la humanidad, y nada a la Especie, a la humanidad de otra época."


Coices de porco

Coice de Porco I

No baixo de lá da estrada, a Veia e o Menino vão pipocando numa carroça tirada por dois cavalos. No acostamento de cá, vai o Ciclista. Lá pelas tantas, passa por outro vivente de bicicleta e saúda-o. O tipo responde, e chama a atenção do Ciclista o estado de desarranjo dos dentes dele: quantos faltam? Quão tortos estão os remanescentes? O Ciclista passa pelo vivente e continua.

Mais adiante, para sua surpresa, já estão a Veia e o piá na carroça, agora no baixo de cá da estrada: o Ciclista não viu quando eles atravessaram a estrada nem quando o ultrapassaram. A Veia toma coragem e pergunta ao Ciclista: "O senhor não viu meu marido por aí? Ele vinha de bicicleta, aí por cima da pedra…" O Ciclista, pra confirmar se o Marido da Veia era o vivente que viu na outra bicicleta, só poderia fazer uma pergunta do tipo: "Aquele quase careca, meio sem dente?" Percebe a tempo a ofensa contida na pergunta hipotética e decide não a fazer. Responde: "Não, senhora, não vi, não sei onde ele pode estar." A Veia faz uma cara desconsolada, não entende como o Ciclista não viu o Marido, mas aceita a negativa.

O final é feliz: quando o Ciclista está encostado em uma placa da estrada, descansando e tomando água, exausto por conta do vento contra, passam a Veia e o Marido na carroça, "por cima da pedra", com o Menino pedalando atrás, faceiro na bicicleta.

Coice de Porco II

O Ciclista em férias chega à pousada no meio do deserto. Começa a acertar seu pouso com o Hospedeiro, que vai anotando seus dados num caderno encardido com uma letra de criança, que é a letra dos semianalfabetos. Vê as panelas e o ambiente que sugere um comedouro. Pergunta se haverá janta. Como vai ter, cai na asneira de comentar que é bom, porque então pode jantar ali mesmo e pagar o pouso e a janta com o mesmo cheque, que é o seu último. O Hospedeiro responde que a pousada não trabalha com cheques. O Ciclista, que sabe que está a mais de 35km do fim do deserto, sente o bafo na nuca e a unha do dedão no calcanhar. Resigna-se: regra é regra. Aí o Hospedeiro faz merda: pergunta desde quando o Ciclista tem aquela conta do cheque no banco. O Ciclista responde que deve estar impresso na folhinha, e tira-a da pochete. São quase dez anos, e trata-se de um cheque especial. O Hospedeiro pega a folhinha na mão, olha-a, só falta cheirar, e comenta: "Mas tá muito feio esse teu cheque, assim nem o banco aceita!" E invoca o Ser Supremo: "E tem o Patrão, se eu aceito isso, depois ele cobra de mim…" O sangue do Ciclista ferve, um cheiro de arbitrariedade enche o ar, mas o cara se controla.

Mantendo a calma e a politesse tanto quanto possível, o Ciclista monta na bicicleta e se vai. Na hora de montar, em frente às mulheres da pousada, resiste à última tentação: repetir o gesto dos apóstolos, depois imitado por Antônio Conselheiro nos sertões da Bahia, de sacudir a poeira das sandálias à porta das cidades que os rejeitaram, significando: "Daqui não quero levar nem o pó!" Percebe, porém, que o próprio gesto seria pérolas aos porcos naquele deserto, e parte em silêncio, sem sacudir a poeira dos Reebok, que, aliás, pouco ou nada têm a ver com sandálias apostólicas.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Verbetes I

Estou trabalhando em textos novos. Por ora, e talvez mais duas vezes no futuro, vou embromar vocês com uns posts que saíram na fase de verbetes do Ménage; eles foram um tantinho limados para o contexto deste blog e para se adequarem ao novo acordo ortográfico. Fazendo um parêntese: que acordo? Revolta-me ter de escrever sem o trema sabendo que Portugal não ratificou o acordo e que, portanto, em nada mudou sua ortografia! Fizemos nós essa cagança com nosso quinhão da última flor do Lácio, inculta e bela, pra quê? Enfim, aí vão os primeiros verbetes, com ou sem o perdão da Thaís :-):

Comunicação de casal
Carranca abre caminho. É toda essa comunicação não-verbal que serve de advertência, que diz sem dizer que há uma linha que não se deve cruzar. Temos uma relação, mas ainda somos dois indivíduos e o meu espaço ninguém tasca! O olhar fulminante, nossa herança fantástica do basilisco, ou o gesto curto, decidido, da mão à altura da cintura. Pequenas violências que evitam as grandes e que, portanto, preservam a relação.

Abre-se então, entre esses espaços preservados, o campo para o carinho mútuo. Cafunés, aqueles apelidos tontos, mais das vezes zoológicos, que não evitam os amantes, o sexo gostoso e um dia, quem sabe, a glória de fazer amor de verdade.



Desafogo
O grito do Ipiranga. "The Short Happy Life of Francis M", do Hemingway.

Ou não.

Ou o contrário: o menino de 11 anos, o mais novinho em sua turma, que num assomo da loucura que demonstrará mais tarde nas paixões da adolescência, diz para sua colega que, para ele, ela tem mais magia do que todos os filmes do Harry Potter juntos! O desafogo de confessar uma paixão que já não é suportável incubada, que crescia como um câncer, ocupando o espaço de outras coisas saudáveis (e não como uma figueira, que cresce para tornar-se mais misteriosa e forte), compensa fartamente a trabalhosa digestão de todo o desdém que ela lhe professa: finalmente, o autorama volta a ter graça!

O pau de selfie

“Eu poderia dizer, entre outras coisas, que a cidade é feita para que possamos conversar.”
Paulo Mendes da Rocha, arquiteto

O próximo dos evangelhos morreu em algum ponto por aí no século XXI e não foi só aqui no Brasil: não faz muito que um copiloto deprimido se suicidou levando um monte de gente junto! Aqui em Porto Alegre, vamos aos extremos: tem os cretinos que deixam o carrinho do supermercado atrás do teu carro e tem o bandido que mata uma mulher em plena luz do dia, na praça em frente ao Rosário, porque ela instintivamente segurou a bolsa quando ele veio por trás e puxou-a.

O pau de selfie não é nem o carrinho do cretino nem o revólver do bandido, mas ele é sintomático: "se possível, não quero mais me comunicar ao vivo com ninguém!"; "Na Internet, abro mão da minha privacidade e falo com qualquer um; no parque, são todos estranhos perigosos!"

Se o sujeito não estiver numa situação de perigo e/ou desconforto embaixo d’água, metido numa correntada ou passando um baita frio, não tem como um mergulho ser uma experiência ruim, porque tem duas coisas ótimas que não mudam nunca: nem que o teu parceiro de mergulho queira, ele não consegue falar contigo, é quase uma hora de silêncio de rádio com o resto da humanidade, e também lá o demônio da gravidade, que tanto atazanava o Zaratustra de Nietzsche, perde seu poder: se fizeres tudo certo, terás flutuabilidade neutra. Eu tiro ainda outro prazer: estou autônomo, carrego comigo até o ar que respiro! Coisas de um cara que no fundo é um bicho de concha...

Por outro lado, gosto do papo até com o cara atrás do balcão da lanchonete de um posto de gasolina perdido no meio do nada na Bahia, que me contou os últimos dias do Lamarca, fuzilado perto dali, na propriedade de um primo seu. Aliás, mais uma vez: não poderia viajar sozinho de moto oito mil quilômetros pelo Brasil se não contasse com o próximo.

Sociedade e civilização não são a mesma coisa. Os nômades do Saara e os ianomâmis vivem em sociedade, mas não são civilizados, porque civilização, desde sua própria raiz, é viver em cidades. Fazemos isso desde o começo da agricultura, que nos permitiu acumular excedentes de alimentos, porque acreditamos que é mais vantajoso, por várias razões, mas foi também a partir da vida nas cidades, onde havia mais gente do que um grupo familiar expandido, que se fez necessário escrever códigos, pautar a convivência, em busca de um mínimo de harmonia. Cada vez que encontro um carrinho de supermercado atrás do meu carro, sinto que as condições de convivência estão se deteriorando, que o onipresente “foda-se o outro” está minando o sentido da vida civilizada.

domingo, 17 de julho de 2016

A Resposta

Estava hospedado numa pousada-parque bicho-grilo em Punta Rubia. Foi das grandes rateadas que dei na vida: não prestei atenção nas informações do site e aluguei na virada do ano um chalé sem ar condicionado! Num começo de tarde, medi 37ºC na sala! Dormir era brabo, nick-nick era heroísmo...

Mas o que nos leva a este textículo é justamente o problema oposto: ao invés de como esfriar o chalé, como aquecer a água do banho? O aquecedor era um desses de parede normais, só que colocado numa casinha própria, com sua chaminé, atrás do chalé.  E não funcionava, e o guri da pousada ia lá, mexia e nada, a água começava a aquecer e logo esfriava. Um saco.

Um dia eu andava por ali, cozinhando ao sol, e vi um passarinho na volta da chaminé. Eu me criei com esses aquecedores, mais ou menos conheço suas manhas, então me deu um estalo, fui falar com a gerente e lhe disse: acho que tem um ninho de passarinho na chaminé, por isso o aquecedor não fica ligado. Ela levantou a bola: o senhor viu o ninho? E eu tive o imenso prazer de responder-lhe, com um sorriso que eu não teria como disfarçar:

      —   ­Yo no he visto el nido, pero vi el pájaro.

Este texto ficaria melhor se eu parasse na frase acima, mas não resisto: eu estava certo, a chaminé e até a parte de cima do aquecedor estavam entupidas pelo ninho do passarinho, o guri teve de limpar tudo, mas a água continuou uma merda. Fazer o quê?

sábado, 16 de julho de 2016

A Espada Flamígera

Antes de mais nada: salvo engano, esse texto foi escrito circa 2003 para o falecido blog Ménage.

A Espada Flamígera é um símbolo simples da expulsão do Paraíso.

Na minha experiência, as meninas não entendem que uma relação à qual se apegaram acabou enquanto não se lhes indicar a porta, segurando na outra mão a espada em chamas, qual Arcanjo Miguel. Em outras palavras: um mínimo de rispidez faz-se necessário.

Há um ponto em que a Espada Flamígera e o Caminho do Zen-budismo se cruzam. A última coisa que deseja um peregrino do Caminho é perder a serenidade e desembainhar a Espada. Não se trata propriamente de respeito à pessoa com quem se estabeleceu a relação que ora urge terminar, trata-se de preservar aquela ordem interior que custa tanto construir. Frente à falta de um mínimo de percepção ou sabedoria da outra parte, porém, andar para trás no Caminho e por um momento perder as estribeiras é uma alternativa preferível a cometer a violência contra si mesmo de continuar convivendo com alguém que, por ação ou omissão, amiúde quebra-lhe a paz interior. É melhor perder a cabeça e incendiar-se como um fósforo do que desandar o Caminho dia a dia numa relação frustrante.

domingo, 10 de julho de 2016

O Búfalo da Justiça

É uma terça-feira, dia do Willy Walentz Trio no Café Lautrec. A banda do Willy é um trio de gringos, mas eles praticamente só tocam jazz partindo de música brasileira. Poucas coisas em WDC foram tão boas pra minha cabeça, ouvidos incluídos, quanto as noites de terça no Lautrec. Quando o bar entrou em reformas, sem prazo para conclusão, deixei de ir. Só que chego de viagem na terça, mal-humorado, lembro que é terça e decido ir ao Lautrec de qualquer jeito. Quem sabe já reabriu? Desilusão, o bar tem muito mais cara de coisa que fechou pra sempre, for good, corvo do Poe, estas merdas. Respiro fundo e continuo subindo a calçada da 18, pensando em onde andarão o Willy e cia.

O bairro em que fica esta parte da 18, cheio de cafés e restaurantes das mais diversas culinárias, espelho da diversidade cosmopolita desta cidade relativamente pequena, chama-se Adams Morgan. Há um clube que usa o bairro para um trocadilho: Madam's Organ. Na janela que dá pra 18, um neon diz: "Sorry, we are open", outra brincadeira com o letreiro comum que diz: "Sorry, we are closed". Por aí, espero passar a ideia de um lugar que tem um senso de humor autodepreciativo.

Entro no Madam's Organ, porque alguém vai tocar delta blues. Mais tarde descubro que o alguém é só um cara, voz e violão (é, meus amigos, parece que delta blues pode prescindir da guitarra elétrica...). A seleção natural, porém, garante que até um voz e violão tem uma qualidade muito acima da média brasileira. Das coisas boas nesta terra: se alguém vai fazer música em público, não tem erro: pode apostar na qualidade. Seleção natural no más. E, como a tecnologia barateou a difusão musical, mais ou menos à Gutemberg, claro que o índio tem o seu CD.

Dentro do bar, obtenho a grito uma Heineken. E nada de lugar no balcão. Depois de quebrar a cara no Lautrec, esse ambiente vai comendo meu escasso entusiasmo. Até que arrumo um espaço pro cotovelo no balcão, coisa das mais importantes nesta situação. O índio solitário começa sua apresentação. Fico meio perdido, olhando pro teto e pras paredes. Das coisas deste boteco, a confusão que vai pelo teto e pelas paredes, o que faz com que meu olhar não seja o de um catamoscas. Por exemplo: pendurados com fio de nylon, um marreco e um faisão, num voo improvável, com possibilidades de colisão, dependendo do vento. Um torso de veado, patas dianteiras incluídas, colocado na parede de cabeça pra baixo. Uma cabeça de urso. Um pelego de urso. Um trompete do tempo do Bix. E a garçonete em Marte, perdendo dinheiro, fazendo merda, mas me mantendo as Heineken geladas. Um cara alto vem pagar a conta no balcão, dá zebra com o cartão dele, a coisa começa a realmente demorar demais, e o tempo todo o cara na minha frente, fodendo minha visão do índio solitário, quase pisando no meu pé, a distância mínima regulamentar violada, vou juntando pressão. Finalmente, a coisa se resolve e ele se manda, antes de eu perder a paciência com a falta de desconfiômetro.

Pelo bar, vai e vem um borracho que, inevitavelmente, me faz pensar, com saudade, no Elias. A garçonete tenta comprá-lo com cinco dólares pra ele se mandar, mas ele sabe o valor da opção e não arreda, continua indo de roda em roda, incomodando um pouco, fedendo bastante. Uma dupla se manda, vagam tamboretes no bar e eu me instalo. Começa a melhorar. O índio solitário parece não cansar e segue cantando. Antes de cada canção, dá informações sobre quem gravou a música antes e outros comentários interessantes, tudo de memória. Nota-se que o cara leva delta blues muito a sério. Cada louco com a sua mania. Entra um trio maluco: duas gurias que podiam ser de Saturno com um cara igualmente estranho. Despudoradamente, pedem-me pra mudar de banco, ignorando o poder da inércia e o mau humor que acarreta cada violação desta força da natureza. Resolvo ser um cucaracha do bem e mudo de banco sem chiar nem mandar ninguém paputaquiupariu!

Mas, até que enfim, tô bem instalado: ninguém mais vai sarnear e a cerveja vai fluindo via uma garçonete porraloca mas simpática. E é então que o meu olhar se encontra com o olhar do búfalo. Tem só a cabeça empalhada na parede, em cima da porta de entrada, à direita do palquinho. Encaro o búfalo e penso que, afinal, depois de tanta encheção desde Houston, estou bem instalado e servido. E o búfalo me devolve a mirada, com aquele ar sério, bovino, dos búfalos. Lá pela quarta Heineken, é quase natural que me venha a frase: o búfalo da justiça. Símbolo do esforço recompensado. E é aí que o sombrero grita. Tem que gritar, porque é vermelho brilhoso com tachinhas metálicas. Puseram um sombrero mexicano, de festa no gala gay mexicano, sobre os cornos do pobre búfalo! Moral da história: nunca leve nada a sério, nem o grave olhar do búfalo da justiça. É mesmo tudo uma palhaçada. Demócrito na cabeça.

Não acaba aí. Da parede, o búfalo da justiça vê uma oriental entrar sozinha no boteco, pedir um copo de tinto, despachar um oligofrênico que entra de sola e a convida para sentar-se à mesa onde ele está com um grupo de amigos, e fincar pé na minha frente. Vejo que não é o primeiro copo da noite pra ela, vejo que não é de sola que se entra no jogo dela e dou um tempo. Ela não dá nenhum sinal de que vai mudar de lugar, o búfalo é minha testemunha. Bem sentado e incomodado, levanto e digo pra ela pegar o banco. Ela faz de conta que não ouviu/entendeu, pensando (aposto!) que eu também ia dar-lhe uma solada. Fico quieto, olhando pro índio solitário, que vai desfiando seus blues. Ela acaba sentando. Como eu não falo, ela acaba puxando assunto. Em pouco tempo, sou guardião oficial da bolsa e do casaco, que ela abandona a cada cinco minutos pra tirar água do joelho. Ela é coreana, três anos de US, um inglês tão ruim que nem entende o que digo, coisa que só vi entre coreanos, estudando pra ser solution provider da Microsoft. Papinho vai, papinho vem e ponho Au Pied de Couchon na roda, dos poucos after-hours de WDC, claro que sem álcool. Ela não diz nem sim, nem não.

Alguém começa a dar corda no borracho. Ele tira, não vi de onde, dois cartões enormes, onde há duas pinturas que fez, e as expõe perto do palquinho. A da direita lembra um rosto de cristo daqueles rostos serenos do tempo da Galileia, antes da loucura final em Jerusalém. A da esquerda é um rosto de susto, dramaticamente exoftálmico. As duas tem contornos? fundos? à Pollock: aquela zorra de espirros pretos que a gente fazia nas aulas de educação artística com têmpera diluída e um canudinho de refrigerante. O búfalo da justiça, mesmo debaixo do seu chapéu de palhaço, mantém a mirada séria. O exoftálmico me dá um outro olhar, um olhar de pavor que a gente só imagina a partir de certos contos do Poe, corvos à parte. Pela segunda vez na noite, as Heineken e eu pensamos em comprar uma obra de arte alternativa. Impressionado, pergunto à garçonete o nome da figura. Sasha. O trocadilho vem fácil: é o Sasha da cachaça. Quando o índio solitário volta ao palquinho e recomeça a música, os quadros do Sasha perdem o interesse e ele me envergonha: cuidadosamente guarda sua obra, coisa que eu jamais conseguiria.

Ao fim do show, cortam também o trago e começam a nos correr. Informo que vou pegar um táxi pro Pied. Ela hesita, está de carro, duvida, repensa, encontra uma solução intermediária: convida outro cara, que havia puxado assunto com ela nos últimos minutos, pra ir junto. Eis aí o importante da história: em WDC, vila cosmopolita, é possível juntar uma coreana, um nativo e um brasileiro e encarar um omelete às duas da manhã. Em Houston, isso não vai acontecer nem se for planejado, muito menos por acidente, como foi o caso. Ou talvez não tenha sido: talvez tudo tenha sido obra do búfalo da justiça. Quem sabe?

sábado, 9 de julho de 2016

Comunicação

Matemática e suas afilhadas: uma linguagem que, apesar das exceções, do princípio da incerteza de Heisenberg, aceita algumas verdades, reais o suficiente para que se dividam bombons entre sobrinhos ou se preveja um eclipse da lua. Em outras palavras, uma linguagem objetiva.

Fora daí, a objetividade é sempre ilusória. A carga de subjetividade é sempre maior do que a de realidade. Quem "lê" a chapa de um gel de poliacrilamida onde um gene foi sequenciado interpreta a ordem das bandas, bem menos do que se interpreta um poema, mas num processo análogo. Não importa; o que é preciso é que se chegue a um efeito satisfatório, algo que encontre consonância com as expectativas do leitor, e isso é tão verdadeiro para o gel quanto para o poema. Se houver dissonância, a chapa irá para o lixo e o poema terá fracassado: fechado dentro do livro, ficará como o gênio das Mil Noites e Uma Noite, aguardando que alguém o descubra.

Então o que fazemos nós que lidamos com o verbo, tão superficialmente (ainda que não falazmente) divididos em cientistas, filósofos, jornalistas, ficcionistas e poetas, é emitir ondas na esperança de que alguém as capte e as aceite, no sentido de que se modulará para ondular com elas enquanto durar a mágica da transmissão. Falando de magia, os que a ela são avessos talvez captem as ondas, mas não dançarão com nossos fantásticos escritores fantásticos; os impacientes não ficarão sintonizados na Montanha Mágica tempo suficiente para sentirem o quanto dói nos ouvidos um portaço de Mme. Chauchat; os céticos desprezarão o kardecismo; os intolerantes à ambiguidade irritar-se-ão com a interminável disputa entre Kimura e os selecionistas. Talvez as ignorãças do Manoel de Barros, contra o desejo do autor, sejam para poucos.
           
O problema, às vezes, é alimentar a fonte emissora. Noutras vezes, o problema é ter alguém para pré-avaliar a emissão, a fim de que não se congestione demais o espaço. Para manter um critério minimamente justo, é preciso admitir que os editores da Nature, da piauí e da Companhia das Letras têm as mesmas chances de errar, e que eventualmente o fazem.


O resultado me parece uma salada em que muitos pensamos que temos algo a dizer, seres humanos (errare humanum est) fazem uma pré-avaliação do que se vai divulgar, exceto em blogs como este, facebooks e modernices afins, e o que finalmente vai ao ar fica por aí, errando até encontrar um entendimento cujas expectativas entrem em consonância com a mensagem.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Comentários

Recebi por e-mail dois comentários sobre o post "A Solução" e acho que cabe uma resposta curtinha aqui. Publiquei num sábado de propósito. Só quero contar que escrevi o texto em 1996 ou pouco antes, quando morava na Doutor Timóteo e o som de obras em stereo estava me enlouquecendo aos poucos. Aliás, a situação agora não é muito diferente, meno male que dessa vez não estão botando abaixo a fábrica da Souza Cruz para limpar o terreno e construir três torres! Voltando ao assunto: se exatos vinte anos depois o texto ainda casa tão bem comigo que o postei aqui, é claro que, em última análise, minha solidão é uma escolha. Da mesma forma, continua perfeitamente claro pra mim que não vai ser num boteco, numa madrugada de sábado, que vou encontrar alguém que me faça mudar de ideia.

Guardanapos III

Y así pasan los días:
histórias curtas que haveria que memorizar e não perder
tempo que não vai começar a existir nem parar de passar
luas tão refletoras, tão mutantes
simples questão de ângulos e distâncias
aquele dia de março em que o ar estava tão parado, pressão alta, um azul puro e infinito, os pés tranquilos sobre a areia da praia, o quebrar preguiçoso das ondas, carentes de vento, as gaivotas caminhando pela areia, carentes de vento, as velas quietas. A tola aventura humana suspensa por um momento, parada no ar parado, sob o sol-bênção, o sol-paz.
Ter então tempo para ter tempo, para sujar a bunda de areia e pensar em não pensar.
Seria bom então ter uma necessidade primária daquelas e poder satisfazê-la o mais bestialmente possível, comunhão violenta com a natureza, morte da dualidade e da dialética, fusão com o absurdo, renúncia à razão, conquista da imortalidade de um cavalo. A besta nua de roupa e razão, a besta predadora.

***

Algo que, a lo mejor, las sospechas de Macedonio no hubieran alcanzado:
La pasividad de las focas en el hielo es como la pasividad de los humanos en la barra del bar: un cachetazo y todo que te resta es la noche eterna.

***

Epa-epa-hermano: ¡Usted no me entendió pa'a nada si no me entendió pa'a hermano!

sábado, 2 de julho de 2016

A Solução

Um homem vazio na noite vazia. Alguém que teme tornar-se Alonso Quijana, depois de haver abdicado de ser Hamlet, Darwin, Ulrich e Horacio Oliveira e que se sabe, ao menos no íntimo, incapaz de ser Ulisses. Numa hora em que, lá fora das paredes protetoras, muralhas modernas feitas de quadros e livros, já não se espera que as pessoas sejam racionais, inteligentes: é madrugada de sábado: lá fora só há drogados, desajustados ao volante e gente no cio. Estar à margem desta corrente turbulenta, protegido por quadros e livros, produz uma sensação ambígua em quem ainda não encontrou, mas já entendeu que não é deste rio que pescará uma solução.

Ah, seria lindo vê-la saindo d'água, reluzente, arqueando o dorso e arquejando, a Grande Solução, fisgada pelo anzol do raciocínio com a isca da dúvida!
           
E, no entanto, já não faz sentido esperar esta epifania: sabe-se que não virá, que o milagre se postergará ad infinitum.

Temos momentos tão brilhantes, tão bravos, tão Ulisses, enganador de sereias, vencedor de pretendentes, encantador de feiticeiras; momentos tão obscuros, tão Hamlet, o príncipe que sacrifica sua razão (esse est percipi) por um esquema que não cumpre, uma vingança que não executa. Voluntariamente deixar de ser o príncipe para perseguir uma meta que, quando a tem à mão, abandona, porque a meta não passa de um pretexto para deixar de ser o príncipe, porque por trás desta farsa está a verdadeira busca, que não é de vingança, mas de autoconhecimento. Sacrificar o príncipe para poder ser Hamlet. E, ao final, o destino é mais poderoso (como em Macbeth) e no duelo com Laertes a reiterada vilania do rei cria uma situação em que já não é possível hesitar, já não é possível deixar de executar a ordem paterna e cumprir a vingança. Absolutamente nonsense: tanta renúncia para, no último ato, cumprir a ordem recebida no primeiro. Hamlet não consegue dissociar-se do príncipe nem pela via da loucura, ou seja, nem sacrificando o que de mais humano há no homem: a razão.

            E aí voltamos às questões:
            qual destino escolher?
            e para quê?
           
A resposta à segunda pergunta só pode ser uma: autoconhecimento. É preciso ter uma visão budista da coisa e acreditar que o autoconhecimento por si só bastará, que o homem "iluminado" comungará com a natureza e estará tão cheio e completo que será como se estivesse vazio: as impressões do mundo exterior entrarão nele como um grito na lua — simplesmente não encontrarão onde se propagar. Não perturbarão.
           

Quanto à primeira pergunta, o mais tentador é voltar a responder: "caminante, no hay camino: se hace camino al andar". O problema é que, sem atingir o estado-objetivo, sem matar o ego e suas preocupações tão poderosas quanto infantis, cada percalço do caminho é um problema sério, ou ao menos se parece muito com um.