sábado, 2 de julho de 2016

Paralelos II

Em 1935, um jovem de 23 anos leu um livro que o perturbou, então juntou coragem e escreveu para o autor uma carta elogiosa, que lhe respondeu dizendo que era a primeira carta inteligente que havia recebido de um inglês sobre seu livro. Iniciou-se aí, mais do que uma correspondência, uma amizade que duraria 45 anos.

Em 1932, um jovem de 18 anos foi apresentado em um almoço a um escritor de 33 anos, que havia começado a se firmar a ponto de ter sido convidado para aquele seletíssimo ambiente. O moço era jovem demais para aquela roda; o escritor, que enxergava mal, quebrou uma lâmpada num passo em falso. As deficiências de experiência de um e de visão do outro contribuíram para que se tornassem amigos, cúmplices naquele ambiente onde não se sentiam à vontade.

São esses os começos de duas amizades que, se postas em paralelo, mostrarão tantas diferenças quanto semelhanças: Henry Miller e Lawrence Durrell; J.L. Borges e Bioy Casares. O fator determinante das diferenças talvez seja a distância: em 45 anos de amizade, Miller e Durrell estiveram juntos um tempo ínfimo, enquanto Borges e Bioy eram praticamente inseparáveis.

A diferença mais importante para nós, que só os conhecemos como leitores, porém, talvez seja o grau de influência em suas obras que cada um aceitou de seu amigo. Bioy, em seus depoimentos, afirma que recebeu de Borges, acima de tudo, o sentido da disciplina para escrever: tornou-se mais metódico em sua maneira de trabalhar e passou a ser o que ele chama de "escritor deliberado", isto é, preocupado com o quê escreve e com o como iria pôr no papel, enquanto teria passado a Borges uma ideia de simplicidade, diminuindo a tendência dele para o barroco.

Não creio que o mesmo se aplica aos outros dois: Durrell amou "Trópico de Câncer", enquanto Miller adorou "The Black Book". Os anos se passaram e Durrell detestou "Sexus", e Miller, que não viveu para ver "O Quinteto de Avignon" terminado, achou que Durrell tinha se perdido em "Monsieur". Em sua correspondência, estas opiniões estão claras, ditas com todas as letras, e se a amizade sobreviveu às críticas negativas foi porque eram homens maduros. Houve diálogo, mas não houve troca.


Ainda assim, as paralelas correm e seu destino é encontrarem-se no infinito. Miller, o fauno, Borges, o incapaz; Miller campeão de pin-pong, Borges cego; Miller homem do mundo, asceta à sua maneira em Nova York e Paris, Borges sempre superprotegido por Leonor Acevedo. No entanto, encontraram-se na amizade por alguém décadas mais jovem, além de no amor por Walt Whitman.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Paralelos I

                                                                                         — Usted escribe, supongo.
                                                                                         — No — dijo Oliveira —. Qué voy a escribir, para eso hay que tener alguna certidumbre de haber vivido.
                                                                                         — La existencia precede a la esencia — dijo Morelli sonriendo.
J. Cortázar, Rayuela, Cap. 154

As paralelas, como se sabe, encontram-se no infinito. Discutir o infinito seria muita pretensão, mas pode-se afirmar com aceitável clareza que ele pode estar, em relação a um ponto ou intervalo de uma reta, a sua frente ou para trás, de modo que em matemática se trabalha com (+) infinito e (-) infinito. Adaptando-se isso à imagem tempo-rio de Heráclito, pode-se afirmar que o infinito a que nos referimos pode estar à montante ou à jusante do ponto ou intervalo que se considera.

Falando de autores e suas obras, ao traçarmos um parelelo em cada caso veremos com mais facilidade um encontro à montante ou à jusante, ainda que eles não sejam mutuamente exclusivos. Arbitrariamente, definiríamos como encontro à montante aquilo que vem primeiro, ou seja, o homem, o autor; à jusante estariam suas circunstâncias ou as reverberações de suas obras.

Vamos falar aqui de um paralelo em que o encontro à montante é mais evidente: o Pequod e o Patna. Falamos dos barcos, e das obras a que pertencem, porque seria muita pretensão falar do conjunto da obra desses autores, em cujas trajetórias vamos buscar o encontro das retas.

De fato, é mais fácil ver a semelhança entre dois homens do mar que se aposentam e começam a escrever com base em suas vivências do que nos destinos de Ismael e Jim, marcados respectivamente pelo Pequod e pelo Patna. Talvez a grande diferença entre estes barcos seja justamente sua relação com o destino: o Pequod é o destino, enquanto o Patna determina um destino: Ismael é um títere dentro do Pequod, enquanto Jim o é depois do Patna. Se o Pequod é inferno, onde homem e natureza se enfrentam, o Patna é maldição.

Melville, terminado o drama que se propôs narrar, descarta seu narrador: não sabemos nada de Ismael depois de resgatado pelo Rachel. O Lord Jim de Conrad passa o resto de seus dias depois do Patna como escravo de uma coragem que precisa demonstrar. Torna-se difícil ver o ponto de encontro em (+) infinito. Em (-) infinito, temos dois homens que, à diferença de outros grandes escritores, como José de Alencar e J.L. Borges, primeiro viveram e depois contaram histórias interessantes.

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Ao Som do Mar da Arábia

O Gil encerra sua apresentação e lentamente vamos deixando o Azad Maidan, embalados pela Indian Ocean Jazz Orchestra (baixo, guitarra de 12 cordas, bateria e percussão), excelente grupo local escalado para fechar a cerimônia de encerramento do Quarto Fórum Social Mundial. Somos 23 cabeças: andamos devagar: não há alternativa para um grupo tão grande. Somos 23 cabeças reunidas pela ONG franco-espanhola Babels (o nome não poderia ser mais bem posto!) para interpretar o Fórum.
Tomamos o trem de Churchgate para Vile Parle separados: os meninos vamos num vagão, as meninas, noutro. Na estação de Vile Parle, descemos do lado oeste, distribuímo-nos em oito tuk-tuks e rumamos para Juhu Beach, onde outro subgrupo de Babels já nos esperava em um café. Aqui acontece o desencontro do grupo: é impossível manter unidas as mais de 30 cabeças que somos agora, quando o café já fechou a cozinha e não vende cerveja.




Tuk-tuks de Mumbai

A dissidência a que me junto quer comida e birras. Erramos por Juhu Beach e Jairo, um galego-judeu do nosso grupo, não nos deixa esquecer do quanto nos parecemos com Moisés e seu povo, quarenta anos no deserto... De súbito, o Napoleão que vinha se debatendo dentro de Laura (como o Alien antes de nascer!) aflora de vez e ela nos guia ditatorialmente para as barraquinhas de "chiringuitos". (Afeiçoei-me tanto a esta palavra...) As barraquinhas estão sobre a calçada e logo onde acaba o pavimento ruge o Mar da Arábia em sua maré alta, as ondas quebrando-se contra o meio-fio.

Antes que eu caia em tentação e coma algo capaz de me liquidar, chegam as cervejas que encomendamos e um emissário da outra dissidência, informando-nos que eles agora estão muito bem instalados em outra barraquinha logo adiante. Assim que os mais bravos terminam seus "chiringuitos", caminhamos pela estreita faixa de praia até aonde está o resto dos babelitos.

Eles estão instalados como marajás sobre tapetes de grama artificial. A maré está baixando, mas metade da pequena roda-gigante ainda está dentro d'água. Queria poder dizer que havia uma lua sobre todo este cenário, mas a verdade é que, com toda a poluição de Mumbai, se havia uma lua, ninguém viu.

Este foi o verdadeiro encontro do grupo: finalmente, não havia mais coordenadores e intérpretes, correndo de sala em sala, enfrentando todo tipo de falha técnica possível e imaginável. Éramos só pessoas de boa-vontade que haviam viajado meio mundo para ajudar outras pessoas igualmente de boa-vontade a se entenderem e este clima era evidente, estava no ar que éramos um grupo de gente boa e isso nos fazia bem, criava um bem-querer natural. Conversamos e rimos, felizes uns pela simples companhia dos outros, ouvindo o Mar da Arábia, que roncava em protestos sua retirada na madrugada.

Os mumbaikars que nos haviam acolhido tão hospitaleiramente queriam dormir: já haviam fechado as barraquinhas e estendido as esteiras em que iam passar a noite, cena comum naquelas terras: as pessoas dormem ao pé de suas tendas de negócio. Entendemos que era hora de tirar o time de campo pela última vez: dissolvia-se o grupo Babels que foi ao Quarto Fórum.

Uma espanhola tinha tanta fome quanto eu e aceitou o convite para omeletes no meu hotel. Comemos, tomamos um absurdo de quatro cervejas mais, conversamos, descobrimos certas ternuras, e ficamos por aí: no meu quarto tinha um babelito, no dela, uma babelita e nenhum quarto vago no hotel. Acompanhei-a ao tuk-tuk que a levaria ao seu hotel, que a levaria de mim, ambos com a tristeza da separação nos olhos. Foi um encontro, não há dúvida, mas os carinhos que não trocamos, o amor que não fizemos, são hoje assunto do corvo do Poe: nunca mais! Subi para o meu quarto resmungando como o Mar da Arábia rugiu sua retirada das areias de Mumbai.
Bruegel, O Velho: A Torre de Babel

terça-feira, 28 de junho de 2016

Listas I

Pontos esquecidos na Declaração de Direitos do Homem:
  • Todo homem tem direito à esperança de um gol aos 45' do 2º tempo.
  • Todo homem tem direito a uma mulher que o resgate de si mesmo.
  • Todo homem tem direito a errar nas suas suposições, tipo: ter a surpresa de ver o boteco encher às onze horas de um domingo chuvoso.
  • Todo homem tem o direito de se pensar eclético e de ser incoerente.



    O que um homem agradece a uma mulher?
    •  Cada amanhecer suave, i.e., cada um em que a solidão não morde.
    •  A maneira gentil como acende um fogo e a maneira solidária e apaixonada como arde no incêndio subsequente.
    • Cada ensinamento sobre a natureza dele que vem disfarçado de insight.
    •  O tempo que lhe sobra para o xadrez e a literatura porque ela se ocupa voluntariamente da louça.
    •  A perspectiva diferente, que às vezes vem tão a calhar.
    •  O frequente renovar-se, sempre refrescando os olhos pouco atentos, e talvez cansados, do seu amado.
    • A infusão de alegria e de autoconfiança que ministra ao seu amante quando a ele se entrega.

    Belas Artes

    Este texto me saiu depois de visitar o Museum of Fine Arts de Boston. Uma de suas relíquias mais preciosas é uma estatueta minóica de mais ou menos 1500 A.C.

    Estatueta de marfim, hoje encapsulada, protegida por vidro e alarme, líquido disfarçado e elétrons corredores, açoitados ou atraídos (depende sempre do referencial...) pela diferença de potencial entre duas pontas de um circuito que até o toque inocente de mão infantil pode fechar, ontem foste aviltada: roubaram-te os adereços de ouro quase todos: perdeste teu diadema, que era disco solar, teu cinto, marca limítrofe à borda das partes baixas, e os botões que guardavam os bicos dos teus seios nus. Deusa sensual, foste tocada. Deixaram-te as duas serpentes douradas, espirais vivas: te enfeitam e te miram com adoração e suspeita: a prudência característica da serpente.
               
    Anteontem foste lascas de marfim que algum mercador levou do norte da África para a ilha mágica e próspera de Creta, onde a mão habilidosa do artesão desenhou formas complementares. Pregos de ouro fizeram-te una, e tesuda.
               
    Antes disso, foste elefante, monarca da savana e, mesmo marfim, secreção, tecido morto, eras parte de algo vivo e social — eras mais feliz!
               


    O museu guarda também muito dos japas: é a maior coleção de arte nipônica fora do Japão. Armaduras e espadas, coisas desta coisa estúpida que é a guerra. Propósitos vis, formas pensadas e trabalhadas arduamente para não falharem em seus desígnios. Felicidade das coisas mortas: não se discute sua teleologia, a ligação entre intenção e função, cujo elo evidente é a forma. Triste quando o propósito da coisa morta, em sua forma acabada, é mutilar a matéria viva...
               
    Compensam os budas? Pode a busca de harmonia e iluminação, personificada nesses ícones serenos, contrabalançar a intenção demoníaca, porém fria, da tachi e da katana?
               
    Estas reflexões ainda faziam seu caminho de anizaki, ricocheteando de sinapse em sinapse, quando cheguei aos impressionistas. Repetição: compensa a joie de vivre do par de Renoir as dúvidas amargas de Gauguin e do resto da humanidade, as perguntas essenciais que nos fazemos desde que deixamos as árvores, jogadas sobre uma ontogenia taitiana? Apaga o abraço ardente do casal de Rodin as cores desesperadas de um dos últimos quadros de Van Gogh, pintado semanas antes do suicídio?
               
    E nada disso desaparece ao sair do museu e passar pelo índio, corcovado a cavalo: braços de súplica ou rendição? Prece a Manitu? Trop tard, mon ami — la musée ferme à cinque heures, les bon sauvages sont morts ou foutis, que no es lo mismo, pero es igual.



    segunda-feira, 27 de junho de 2016

    A Condição Humana

    O filósofo e escritor espanhol Ortega y Gasset dizia: “O homem é o homem e suas circunstâncias”. Acho adequado começarmos por aqui, até porque o que segue é mais um agregado de citações e de ideias de outros do que um produto original meu; digamos que eu vou fazer uma colagem.

    Então, o homem é o homem e suas circunstâncias, mas ainda este homem do filósofo pode ser aberto em dois. Gosto da expressão em inglês: “nature versus nurture”. Discordo é do “versus”, acho que deveria ser “and”, porque somos produtos de nossa genética e da nossa criação. O debate expresso no “versus” me parece secundário: importa muito pouco se certa característica de uma pessoa foi mais influenciada por seu genoma ou por sua criação. Só que aí implico com a minha própria tradução: não gosto de “criação”, porque se poderia interpretar como “educação”, ou seja, o conjunto das experiências pelas quais os outros, pais, parentes e professores, consciente e voluntariamente, nos fazem passar, enquanto eu acho que o sentido precisa ser muito mais amplo: deve englobar todas as experiências que vivemos primeira na infância, as boas e as traumáticas, as que nos proporcionaram por quererem e as que aconteceram a despeito de tudo e de todos.

    Ainda neste tema da criação, vale lembrar a frase atribuída aos educadores jesuítas: “Mostra-me o menino aos sete anos e eu te mostrarei o homem.”, ou coisa muito parecida. Bem ou mal, estamos com a personalidade e o caráter formados nesta tenra idade. O resto da vida servirá para deformações e vernizes, mas não passará muito disso.

    Eu acho a natureza humana essencialmente boa. Se eu não pensasse assim, não teria feito as viagens solitárias que fiz, de moto, de bicicleta pelo sul do mundo ou de carro. E sempre encontrei pessoas dispostas a me ajudarem em troca do nada que é um “muito obrigado”. Honestamente, não vejo debate aí: o homem é essencialmente bom, altruísta, e é preciso que algo dê muito errado em sua genética, o que é simplesmente improvável, ou em sua criação, o que, infelizmente, com o desmanche das famílias e das escolas públicas, é cada dia mais comum, para que ele se torne um criminoso.

    Em janeiro de 1988, fui fazer um estágio em uma estação de larvicultura de camarão da UFSC em Florianópolis. Eles ainda estavam construindo extensões do prédio principal e para isso contavam com o auxílio de três presidiários como pedreiros. A estação fica na Barra da Lagoa, longe do centro e da universidade, mas o presídio fica perto da universidade e todos moravam aí por perto, então íamos todos juntos para a estação de manhã e voltávamos juntos à tardinha. Éramos três professores, eu e os três presos numa caminhonete cabine dupla apelidada de Trovão Azul. Não quero deixar os três presos assim, sem nome nem rosto. Havia Seu Tatu, o mais velho deles, cumprindo pena por homicídio. Na verdade, Seu Tatu, que era pequeno proprietário e agricultor no interior do estado, foi preso por ser burro: numa disputa com um vizinho, foi jurado de morte e, ao invés de esperar o outro tomar uma atitude e se defender, ou de matá-lo numa tocaia, Seu Tatu foi à polícia e avisou: “ele me jurou de morte e eu vou pegá-lo antes que ele me pegue”. E pegou. E aí não teve desculpa nem defesa, foi condenado por homicídio premeditado. Tem outro cujo nome eu não lembro, mas lembro que era sujeito grande, mais para negro, traficante de maconha que num tiroteio com a polícia deu o azar de matar um policial. O terceiro era o Arroz, homicida também, só não sei em que circunstâncias cometeu o crime, mas era consenso que o Arroz não batia bem, era meio maluco, e que nele a gente devia manter um olho. Eles tinham seu trabalho de pedreiros e nós tínhamos o nosso, mas convivíamos em dois momentos: a hora da melancia, aí pelas quatro da tarde, e o futebol à tardinha. Conversávamos comendo melancia e depois batíamos bola, mas ninguém batia em ninguém. Justamente o negro, por ser tão grande, tomava muito cuidado para não machucar ninguém. Desde esta experiência, sou radical e veementemente contra a pena de morte. E não sei, mas acho que, se não também o Arroz, que não batia muito bem, podia ter um problema genético, sei lá, pelo menos os outros dois eram essencialmente bons, apesar de homicidas. Quem sabe um detalhe não teria feito a diferença?
       
    Então, se até nestes três condenados por homicídio eu “levo fé”, nem adianta discutir sobre o resto da humanidade: acho mesmo a natureza humana essencialmente boa. Falta, então, falar do outro componente humano, o que o Ortega y Gasset chamava de “circunstâncias”. Quero aqui tirar do baú outra expressão velha, a “condição humana”. E aqui não tem jeito, não consigo ver um quadro positivo: acho a nossa condição desgraçada. Para começo de conversa, como resultado da nossa evolução, somos animais conscientes de nós mesmos, ou seja, nós e poucos outros primatas nos reconhecemos no espelho. Em segundo lugar, o que é mais grave: somos a única espécie consciente da própria mortalidade: até prova em contrário, o homem é o único animal que sabe que vai morrer.

    Neste quadro que pintei, e que eu não diria nem de longe que é completo, ou mesmo satisfatório, acho que o que determina como administramos esta relação complicada entre uma natureza boa e uma condição desgraçada é a criação que vivemos. Digamos que nos extremos opostos deste conflito estariam o homicídio e o suicídio. Supondo que o sujeito encontre um ponto de equilíbrio nesta escala, o que, aliás, é o mais comum, afinal a maioria de nós nem se mata nem mata o semelhante, abre-se a possibilidade daquilo que foi chamado de se atingir um estado evoluído, e que eu chamaria de atingir um estado mais zen, e que não é mais do que perceber com uma clareza que prescinde das palavras quais são as coisas realmente importantes na vida.
       
    As circunstâncias do espanhol, no entanto, não se restringem ao que eu chamei de condição. Acho que ele também se refere ao que poderíamos resumir com o nosso ditado: “A ocasião faz o ladrão”. No sentido, também, de que circunstâncias extraordinárias fazem pessoas normais reagirem de maneiras em que nem elas se reconhecem. Num exemplo pessoal, nas duas vezes em que tentaram me assaltar, eu reagi antes de perceber o que estava fazendo e os pivetes, que felizmente estavam desarmados, saíram de mãos abanando, sem que ninguém tenha se machucado. Numa hipótese extrema, acho que ninguém pode saber como se comportaria no inferno de um campo de extermínio, seja como algoz, seja como vítima. Não fomos feitos para estes extremos.

    Eu diria ainda que a nossa condição, por si só, tem tudo para nos deixar doidos. Quem sabe o sentimento religioso não é senão uma maneira de administrar a angústia de saber que vamos morrer? E quantas loucuras já foram e estão sendo cometidas sob o manto de uma religião ou outra… Contra esta angústia, temos a opor a nossa natureza, que é essencialmente boa, solidária. Juntos, por estarmos ou por nos sentirmos juntos, é que administramos esta e outras barras pesadas. Num exemplo recente, o meu xará Eduardo Galeano foi desencavar a crise dos exilados do Sahara Ocidental. Quem no mundo sabe ou lembra que eles existem? Esta solidariedade de um uruguaio a um povo do qual ele provavelmente não conhece ninguém é um exemplo disso, de estarmos juntos contra as maldades do mundo, seja um terremoto na Indonésia, sejam as injustiças da monarquia do Marrocos contra uma nação mais fraca. O problema, no caso do Galeano e de tantos outros como ele, é o efeito colateral: será que um uruguaio precisa se angustiar pela sorte de uma nação do Sahara? Será que ele não está apenas aumentando a sua já pesada bagagem de angústias?
       
    Tentando concluir e simultaneamente tentando não passar receita, acho que vai e vem e caímos numa receita budista: mais aceitação. Aceitar a condição humana. Aceitar o sofrimento que nos toca. E não andar por aí, como Galeano, procurando mais. O caminho do meio é simplesmente o conselho do nem oito, nem oitenta. Vamos juntos, vamos com calma, e iremos bem. Não sei, isso seria outro assunto, para onde vamos, mas a estas alturas importa mais ir bem do que ir para um lugar definido.

    domingo, 26 de junho de 2016

    Guardanapos II

    O homem branco sou eu, o homem branco é você. Somos nós que tememos nossas faxineiras: vão roubar aquelas abotoaduras inúteis, estragar o controle remoto do videocassete, desafinar o piano. Nós não evoluímos: ainda vemos os outros, os não-brancos, os não-urbanos, os não-graduados, os sem-teto, os sem-terra, como selvagens. Damo-lhes pão e circo: merenda escolar e direito a voto. Encenamos nossa farsa de igualdade, mas não entendemos nada de fraternidade. Somos primitivos.

    ***

    Jazigo de família é como um cinema com um filme ruim: quem chega primeiro pega os melhores lugares, mas quem chega por último estava aproveitando melhor a vida!

    ***

    Se de alguma forma estúpida realmente somos nós mesmos e nossas circunstâncias, então se justifica que busquemos tanto circunstâncias absurdas.

    ***

    Mãe é como capacete: quanto mais protege, mais pesa no cangote.