quinta-feira, 30 de junho de 2016

Ao Som do Mar da Arábia

O Gil encerra sua apresentação e lentamente vamos deixando o Azad Maidan, embalados pela Indian Ocean Jazz Orchestra (baixo, guitarra de 12 cordas, bateria e percussão), excelente grupo local escalado para fechar a cerimônia de encerramento do Quarto Fórum Social Mundial. Somos 23 cabeças: andamos devagar: não há alternativa para um grupo tão grande. Somos 23 cabeças reunidas pela ONG franco-espanhola Babels (o nome não poderia ser mais bem posto!) para interpretar o Fórum.
Tomamos o trem de Churchgate para Vile Parle separados: os meninos vamos num vagão, as meninas, noutro. Na estação de Vile Parle, descemos do lado oeste, distribuímo-nos em oito tuk-tuks e rumamos para Juhu Beach, onde outro subgrupo de Babels já nos esperava em um café. Aqui acontece o desencontro do grupo: é impossível manter unidas as mais de 30 cabeças que somos agora, quando o café já fechou a cozinha e não vende cerveja.




Tuk-tuks de Mumbai

A dissidência a que me junto quer comida e birras. Erramos por Juhu Beach e Jairo, um galego-judeu do nosso grupo, não nos deixa esquecer do quanto nos parecemos com Moisés e seu povo, quarenta anos no deserto... De súbito, o Napoleão que vinha se debatendo dentro de Laura (como o Alien antes de nascer!) aflora de vez e ela nos guia ditatorialmente para as barraquinhas de "chiringuitos". (Afeiçoei-me tanto a esta palavra...) As barraquinhas estão sobre a calçada e logo onde acaba o pavimento ruge o Mar da Arábia em sua maré alta, as ondas quebrando-se contra o meio-fio.

Antes que eu caia em tentação e coma algo capaz de me liquidar, chegam as cervejas que encomendamos e um emissário da outra dissidência, informando-nos que eles agora estão muito bem instalados em outra barraquinha logo adiante. Assim que os mais bravos terminam seus "chiringuitos", caminhamos pela estreita faixa de praia até aonde está o resto dos babelitos.

Eles estão instalados como marajás sobre tapetes de grama artificial. A maré está baixando, mas metade da pequena roda-gigante ainda está dentro d'água. Queria poder dizer que havia uma lua sobre todo este cenário, mas a verdade é que, com toda a poluição de Mumbai, se havia uma lua, ninguém viu.

Este foi o verdadeiro encontro do grupo: finalmente, não havia mais coordenadores e intérpretes, correndo de sala em sala, enfrentando todo tipo de falha técnica possível e imaginável. Éramos só pessoas de boa-vontade que haviam viajado meio mundo para ajudar outras pessoas igualmente de boa-vontade a se entenderem e este clima era evidente, estava no ar que éramos um grupo de gente boa e isso nos fazia bem, criava um bem-querer natural. Conversamos e rimos, felizes uns pela simples companhia dos outros, ouvindo o Mar da Arábia, que roncava em protestos sua retirada na madrugada.

Os mumbaikars que nos haviam acolhido tão hospitaleiramente queriam dormir: já haviam fechado as barraquinhas e estendido as esteiras em que iam passar a noite, cena comum naquelas terras: as pessoas dormem ao pé de suas tendas de negócio. Entendemos que era hora de tirar o time de campo pela última vez: dissolvia-se o grupo Babels que foi ao Quarto Fórum.

Uma espanhola tinha tanta fome quanto eu e aceitou o convite para omeletes no meu hotel. Comemos, tomamos um absurdo de quatro cervejas mais, conversamos, descobrimos certas ternuras, e ficamos por aí: no meu quarto tinha um babelito, no dela, uma babelita e nenhum quarto vago no hotel. Acompanhei-a ao tuk-tuk que a levaria ao seu hotel, que a levaria de mim, ambos com a tristeza da separação nos olhos. Foi um encontro, não há dúvida, mas os carinhos que não trocamos, o amor que não fizemos, são hoje assunto do corvo do Poe: nunca mais! Subi para o meu quarto resmungando como o Mar da Arábia rugiu sua retirada das areias de Mumbai.
Bruegel, O Velho: A Torre de Babel

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