segunda-feira, 27 de junho de 2016

A Condição Humana

O filósofo e escritor espanhol Ortega y Gasset dizia: “O homem é o homem e suas circunstâncias”. Acho adequado começarmos por aqui, até porque o que segue é mais um agregado de citações e de ideias de outros do que um produto original meu; digamos que eu vou fazer uma colagem.

Então, o homem é o homem e suas circunstâncias, mas ainda este homem do filósofo pode ser aberto em dois. Gosto da expressão em inglês: “nature versus nurture”. Discordo é do “versus”, acho que deveria ser “and”, porque somos produtos de nossa genética e da nossa criação. O debate expresso no “versus” me parece secundário: importa muito pouco se certa característica de uma pessoa foi mais influenciada por seu genoma ou por sua criação. Só que aí implico com a minha própria tradução: não gosto de “criação”, porque se poderia interpretar como “educação”, ou seja, o conjunto das experiências pelas quais os outros, pais, parentes e professores, consciente e voluntariamente, nos fazem passar, enquanto eu acho que o sentido precisa ser muito mais amplo: deve englobar todas as experiências que vivemos primeira na infância, as boas e as traumáticas, as que nos proporcionaram por quererem e as que aconteceram a despeito de tudo e de todos.

Ainda neste tema da criação, vale lembrar a frase atribuída aos educadores jesuítas: “Mostra-me o menino aos sete anos e eu te mostrarei o homem.”, ou coisa muito parecida. Bem ou mal, estamos com a personalidade e o caráter formados nesta tenra idade. O resto da vida servirá para deformações e vernizes, mas não passará muito disso.

Eu acho a natureza humana essencialmente boa. Se eu não pensasse assim, não teria feito as viagens solitárias que fiz, de moto, de bicicleta pelo sul do mundo ou de carro. E sempre encontrei pessoas dispostas a me ajudarem em troca do nada que é um “muito obrigado”. Honestamente, não vejo debate aí: o homem é essencialmente bom, altruísta, e é preciso que algo dê muito errado em sua genética, o que é simplesmente improvável, ou em sua criação, o que, infelizmente, com o desmanche das famílias e das escolas públicas, é cada dia mais comum, para que ele se torne um criminoso.

Em janeiro de 1988, fui fazer um estágio em uma estação de larvicultura de camarão da UFSC em Florianópolis. Eles ainda estavam construindo extensões do prédio principal e para isso contavam com o auxílio de três presidiários como pedreiros. A estação fica na Barra da Lagoa, longe do centro e da universidade, mas o presídio fica perto da universidade e todos moravam aí por perto, então íamos todos juntos para a estação de manhã e voltávamos juntos à tardinha. Éramos três professores, eu e os três presos numa caminhonete cabine dupla apelidada de Trovão Azul. Não quero deixar os três presos assim, sem nome nem rosto. Havia Seu Tatu, o mais velho deles, cumprindo pena por homicídio. Na verdade, Seu Tatu, que era pequeno proprietário e agricultor no interior do estado, foi preso por ser burro: numa disputa com um vizinho, foi jurado de morte e, ao invés de esperar o outro tomar uma atitude e se defender, ou de matá-lo numa tocaia, Seu Tatu foi à polícia e avisou: “ele me jurou de morte e eu vou pegá-lo antes que ele me pegue”. E pegou. E aí não teve desculpa nem defesa, foi condenado por homicídio premeditado. Tem outro cujo nome eu não lembro, mas lembro que era sujeito grande, mais para negro, traficante de maconha que num tiroteio com a polícia deu o azar de matar um policial. O terceiro era o Arroz, homicida também, só não sei em que circunstâncias cometeu o crime, mas era consenso que o Arroz não batia bem, era meio maluco, e que nele a gente devia manter um olho. Eles tinham seu trabalho de pedreiros e nós tínhamos o nosso, mas convivíamos em dois momentos: a hora da melancia, aí pelas quatro da tarde, e o futebol à tardinha. Conversávamos comendo melancia e depois batíamos bola, mas ninguém batia em ninguém. Justamente o negro, por ser tão grande, tomava muito cuidado para não machucar ninguém. Desde esta experiência, sou radical e veementemente contra a pena de morte. E não sei, mas acho que, se não também o Arroz, que não batia muito bem, podia ter um problema genético, sei lá, pelo menos os outros dois eram essencialmente bons, apesar de homicidas. Quem sabe um detalhe não teria feito a diferença?
   
Então, se até nestes três condenados por homicídio eu “levo fé”, nem adianta discutir sobre o resto da humanidade: acho mesmo a natureza humana essencialmente boa. Falta, então, falar do outro componente humano, o que o Ortega y Gasset chamava de “circunstâncias”. Quero aqui tirar do baú outra expressão velha, a “condição humana”. E aqui não tem jeito, não consigo ver um quadro positivo: acho a nossa condição desgraçada. Para começo de conversa, como resultado da nossa evolução, somos animais conscientes de nós mesmos, ou seja, nós e poucos outros primatas nos reconhecemos no espelho. Em segundo lugar, o que é mais grave: somos a única espécie consciente da própria mortalidade: até prova em contrário, o homem é o único animal que sabe que vai morrer.

Neste quadro que pintei, e que eu não diria nem de longe que é completo, ou mesmo satisfatório, acho que o que determina como administramos esta relação complicada entre uma natureza boa e uma condição desgraçada é a criação que vivemos. Digamos que nos extremos opostos deste conflito estariam o homicídio e o suicídio. Supondo que o sujeito encontre um ponto de equilíbrio nesta escala, o que, aliás, é o mais comum, afinal a maioria de nós nem se mata nem mata o semelhante, abre-se a possibilidade daquilo que foi chamado de se atingir um estado evoluído, e que eu chamaria de atingir um estado mais zen, e que não é mais do que perceber com uma clareza que prescinde das palavras quais são as coisas realmente importantes na vida.
   
As circunstâncias do espanhol, no entanto, não se restringem ao que eu chamei de condição. Acho que ele também se refere ao que poderíamos resumir com o nosso ditado: “A ocasião faz o ladrão”. No sentido, também, de que circunstâncias extraordinárias fazem pessoas normais reagirem de maneiras em que nem elas se reconhecem. Num exemplo pessoal, nas duas vezes em que tentaram me assaltar, eu reagi antes de perceber o que estava fazendo e os pivetes, que felizmente estavam desarmados, saíram de mãos abanando, sem que ninguém tenha se machucado. Numa hipótese extrema, acho que ninguém pode saber como se comportaria no inferno de um campo de extermínio, seja como algoz, seja como vítima. Não fomos feitos para estes extremos.

Eu diria ainda que a nossa condição, por si só, tem tudo para nos deixar doidos. Quem sabe o sentimento religioso não é senão uma maneira de administrar a angústia de saber que vamos morrer? E quantas loucuras já foram e estão sendo cometidas sob o manto de uma religião ou outra… Contra esta angústia, temos a opor a nossa natureza, que é essencialmente boa, solidária. Juntos, por estarmos ou por nos sentirmos juntos, é que administramos esta e outras barras pesadas. Num exemplo recente, o meu xará Eduardo Galeano foi desencavar a crise dos exilados do Sahara Ocidental. Quem no mundo sabe ou lembra que eles existem? Esta solidariedade de um uruguaio a um povo do qual ele provavelmente não conhece ninguém é um exemplo disso, de estarmos juntos contra as maldades do mundo, seja um terremoto na Indonésia, sejam as injustiças da monarquia do Marrocos contra uma nação mais fraca. O problema, no caso do Galeano e de tantos outros como ele, é o efeito colateral: será que um uruguaio precisa se angustiar pela sorte de uma nação do Sahara? Será que ele não está apenas aumentando a sua já pesada bagagem de angústias?
   
Tentando concluir e simultaneamente tentando não passar receita, acho que vai e vem e caímos numa receita budista: mais aceitação. Aceitar a condição humana. Aceitar o sofrimento que nos toca. E não andar por aí, como Galeano, procurando mais. O caminho do meio é simplesmente o conselho do nem oito, nem oitenta. Vamos juntos, vamos com calma, e iremos bem. Não sei, isso seria outro assunto, para onde vamos, mas a estas alturas importa mais ir bem do que ir para um lugar definido.

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