Este texto me saiu depois de visitar o Museum
of Fine Arts de Boston. Uma de suas relíquias mais preciosas é uma estatueta
minóica de mais ou menos 1500 A.C.
Estatueta de marfim, hoje encapsulada,
protegida por vidro e alarme, líquido disfarçado e elétrons corredores,
açoitados ou atraídos (depende sempre do referencial...) pela diferença de
potencial entre duas pontas de um circuito que até o toque inocente de mão
infantil pode fechar, ontem foste aviltada: roubaram-te os adereços de ouro
quase todos: perdeste teu diadema, que era disco solar, teu cinto, marca
limítrofe à borda das partes baixas, e os botões que guardavam os bicos dos
teus seios nus. Deusa sensual, foste tocada. Deixaram-te as duas serpentes
douradas, espirais vivas: te enfeitam e te miram com adoração e suspeita: a
prudência característica da serpente.
Anteontem foste lascas de marfim que algum
mercador levou do norte da África para a ilha mágica e próspera de Creta, onde
a mão habilidosa do artesão desenhou formas complementares. Pregos de ouro
fizeram-te una, e tesuda.
Antes disso, foste elefante, monarca da savana
e, mesmo marfim, secreção, tecido morto, eras parte de algo vivo e social —
eras mais feliz!
O museu guarda também muito dos japas: é a
maior coleção de arte nipônica fora do Japão. Armaduras e espadas, coisas desta
coisa estúpida que é a guerra. Propósitos vis, formas pensadas e trabalhadas
arduamente para não falharem em seus desígnios. Felicidade das coisas mortas:
não se discute sua teleologia, a ligação entre intenção e função, cujo elo
evidente é a forma. Triste quando o propósito da coisa morta, em sua forma
acabada, é mutilar a matéria viva...
Compensam os budas? Pode a busca de harmonia e
iluminação, personificada nesses ícones serenos, contrabalançar a intenção
demoníaca, porém fria, da tachi e da katana?
Estas reflexões ainda faziam seu caminho de
anizaki, ricocheteando de sinapse em sinapse, quando cheguei aos
impressionistas. Repetição: compensa a joie
de vivre do par de Renoir as dúvidas amargas de Gauguin e do resto da
humanidade, as perguntas essenciais que nos fazemos desde que deixamos as
árvores, jogadas sobre uma ontogenia taitiana? Apaga o abraço ardente do casal
de Rodin as cores desesperadas de um dos últimos quadros de Van Gogh, pintado
semanas antes do suicídio?
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