terça-feira, 28 de junho de 2016

Belas Artes

Este texto me saiu depois de visitar o Museum of Fine Arts de Boston. Uma de suas relíquias mais preciosas é uma estatueta minóica de mais ou menos 1500 A.C.

Estatueta de marfim, hoje encapsulada, protegida por vidro e alarme, líquido disfarçado e elétrons corredores, açoitados ou atraídos (depende sempre do referencial...) pela diferença de potencial entre duas pontas de um circuito que até o toque inocente de mão infantil pode fechar, ontem foste aviltada: roubaram-te os adereços de ouro quase todos: perdeste teu diadema, que era disco solar, teu cinto, marca limítrofe à borda das partes baixas, e os botões que guardavam os bicos dos teus seios nus. Deusa sensual, foste tocada. Deixaram-te as duas serpentes douradas, espirais vivas: te enfeitam e te miram com adoração e suspeita: a prudência característica da serpente.
           
Anteontem foste lascas de marfim que algum mercador levou do norte da África para a ilha mágica e próspera de Creta, onde a mão habilidosa do artesão desenhou formas complementares. Pregos de ouro fizeram-te una, e tesuda.
           
Antes disso, foste elefante, monarca da savana e, mesmo marfim, secreção, tecido morto, eras parte de algo vivo e social — eras mais feliz!
           


O museu guarda também muito dos japas: é a maior coleção de arte nipônica fora do Japão. Armaduras e espadas, coisas desta coisa estúpida que é a guerra. Propósitos vis, formas pensadas e trabalhadas arduamente para não falharem em seus desígnios. Felicidade das coisas mortas: não se discute sua teleologia, a ligação entre intenção e função, cujo elo evidente é a forma. Triste quando o propósito da coisa morta, em sua forma acabada, é mutilar a matéria viva...
           
Compensam os budas? Pode a busca de harmonia e iluminação, personificada nesses ícones serenos, contrabalançar a intenção demoníaca, porém fria, da tachi e da katana?
           
Estas reflexões ainda faziam seu caminho de anizaki, ricocheteando de sinapse em sinapse, quando cheguei aos impressionistas. Repetição: compensa a joie de vivre do par de Renoir as dúvidas amargas de Gauguin e do resto da humanidade, as perguntas essenciais que nos fazemos desde que deixamos as árvores, jogadas sobre uma ontogenia taitiana? Apaga o abraço ardente do casal de Rodin as cores desesperadas de um dos últimos quadros de Van Gogh, pintado semanas antes do suicídio?
           
E nada disso desaparece ao sair do museu e passar pelo índio, corcovado a cavalo: braços de súplica ou rendição? Prece a Manitu? Trop tard, mon ami — la musée ferme à cinque heures, les bon sauvages sont morts ou foutis, que no es lo mismo, pero es igual.



Nenhum comentário:

Postar um comentário