quinta-feira, 23 de junho de 2016

Solidão

Potiguares
Imagino-me um potiguar. Vejo sumirem no horizonte os mastros da nau francesa e penso: "Que pobre deve ser esta gente, que vem de tão longe (tão longe que nunca os vimos antes, tão longe que não conseguiram me explicar de onde vêm) para trocar conosco uns paus que por aqui são mato por umas quinquilharias que não nos servem pra nada. Por pobres que sejam, no entanto, fiquei com vontade de ir com eles: seu chefe não tem um olho e eu vi outro que, como eu, não tem uma perna inteira. Quem sabe entre os brancos eu seria apenas mais um a quem lhe falta um pedaço... Aqui na nossa tribo, minha vida não é fácil, e não é só porque me falta metade de uma perna. Meu primo Poty perdeu um braço na guerra com os cariris e todos o respeitam; de mim, todos riem, porque a meia perna que me falta foi comida por uma tintureira naquela noite em que, sem saber que ela estava presa entre os bancos de areia que se formam na foz do rio mau (não é à toa que o chamamos de Paraíba), entrei na água para banhar-me com Jacy."

(Imagino-me outro potiguar. Penso: "Como mudou nossa vida, desde que esses brancos apareceram para comerciar conosco: eles vêm sabe-se lá de onde e em troca desta madeira que não nos serve pra nada nos deixam ferramentas de um gume, de uma resistência tais que nos permitem fazer em minutos coisas que antes nos consumiam horas... Além de nos presentearem com uns penduricalhos que nos ajudam a rir uns dos outros, o que, pra nós, é muito importante.")

Sequelas
Termino de ler "Sul", a história da famosa expedição de Shackleton à Antártida em 1914-16, escrita por ele mesmo. Desentendo o que levou aqueles homens a correrem os riscos, a pagarem o preço que o Polo deles exigiu.

Misturando
Meu primeiro potiguar imaginário e os homens de Shackleton têm em comum as marcas que a má sorte pode deixar no corpo. Não me aconteceu. Apesar de tantos quilômetros rodados de moto e de alguns acidentes de carro, nada de sequelas.

A casca grossa que carrego não pode ser chamada de sequela, é só um subproduto da solidão, esta maneira de viver só. As cicatrizes são marcas das tentativas de sair da solidão: é quando o bicho sai da concha que ele corre perigo...

Flutuando à deriva em um bloco de gelo, não há nada que não valha a pena tentar pra se salvar; da mesma forma, quando a solidão aperta, não há nada que a gente não tente, porque há muito pouco a ser perdido. O explorador caminha com os pés em ferida contra uma nevasca, porque é isso ou a morte; o sujeito vai de boteco em boteco, com o coração que é uma passa de uva, porque é isso ou a certeza do apê vazio.




Frank Hurley, o fotógrafo da expedição, registra o momento em que o Endurance, destruído pelo gelo, finalmente começa a afundar.

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