Potiguares
Imagino-me
um potiguar. Vejo sumirem no horizonte os mastros da nau francesa e penso:
"Que pobre deve ser esta gente, que vem de tão longe (tão longe que nunca
os vimos antes, tão longe que não conseguiram me explicar de onde vêm) para
trocar conosco uns paus que por aqui são mato por umas quinquilharias que não
nos servem pra nada. Por pobres que sejam, no entanto, fiquei com vontade de ir
com eles: seu chefe não tem um olho e eu vi outro que, como eu, não tem uma
perna inteira. Quem sabe entre os brancos eu seria apenas mais um a quem lhe falta um
pedaço... Aqui na nossa tribo, minha vida não é fácil, e não é só porque me
falta metade de uma perna. Meu primo Poty perdeu um braço na guerra com os
cariris e todos o respeitam; de mim, todos riem, porque a meia perna que me
falta foi comida por uma tintureira naquela noite em que, sem saber que ela
estava presa entre os bancos de areia que se formam na foz do rio mau (não é à
toa que o chamamos de Paraíba), entrei na água para banhar-me com Jacy."
(Imagino-me
outro potiguar. Penso: "Como mudou nossa vida, desde que esses brancos
apareceram para comerciar conosco: eles vêm sabe-se lá de onde e em troca desta
madeira que não nos serve pra nada nos deixam ferramentas de um gume, de uma
resistência tais que nos permitem fazer em minutos coisas que antes nos
consumiam horas... Além de nos presentearem com uns penduricalhos que nos
ajudam a rir uns dos outros, o que, pra nós, é muito importante.")
Sequelas
Termino de
ler "Sul", a história da famosa expedição de Shackleton
à Antártida em 1914-16, escrita por ele mesmo. Desentendo o que levou aqueles
homens a correrem os riscos, a pagarem o preço que o Polo deles exigiu.
Misturando
Meu
primeiro potiguar imaginário e os homens de Shackleton têm em comum as marcas
que a má sorte pode deixar no corpo. Não me aconteceu. Apesar de tantos
quilômetros rodados de moto e de alguns acidentes de carro, nada de sequelas.
A casca
grossa que carrego não pode ser chamada de sequela, é só um subproduto da
solidão, esta maneira de viver só. As cicatrizes são marcas das tentativas de
sair da solidão: é quando o bicho sai da concha que ele corre perigo...
Flutuando à
deriva em um bloco de gelo, não há nada que não valha a pena tentar pra se
salvar; da mesma forma, quando a solidão aperta, não há nada que a gente não
tente, porque há muito pouco a ser perdido. O explorador caminha com os pés em
ferida contra uma nevasca, porque é isso ou a morte; o sujeito vai de boteco em
boteco, com o coração que é uma passa de uva, porque é isso ou a certeza do apê
vazio.
Frank
Hurley, o fotógrafo da expedição, registra o momento em que o Endurance, destruído pelo gelo,
finalmente começa a afundar.
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