segunda-feira, 20 de junho de 2016

Definições

Começando pelo começo, algumas definições:

Solidão interessante: esse é mais um conceito do genial Rodrigo Najar. Refere-se àquelas noites em que o cara fica sozinho em casa, põe sua música preferida, abre um bom livro pra reler, ou rabisca umas maltraçadas pensando na vida, dando graças por não ter ninguém no seu pé. Dá até pra desligar o celular.

Sabotagem: o mau hábito de sabotar as relações com pessoas que nos ameaçam, i. e., que ameaçam nos machucar muito se nos deixarem, porque gostamos muito delas. Mal comparando, é a lógica do Tenório Cavalcanti, o Homem-da-Capa-Preta: "antes que tu me jante, eu te almoço!" A diferença é que a gente não almoça (a gente não dá o pezão antes de levá-lo), a gente sabota a relação até o outro dizer que "assim não dá mais", porque então é justa causa: se o outro não tem coragem de encerrar, a gente se encarrega de fazer o serviço sujo. Aí nego fica uns dias vendo no espelho aquela cara de cusco sem dono, de guaipeca perdido, até que passa.

Ambiguidade: chamo assim aquela situação em que ficamos genuinamente divididos, com dois corações, e sofremos por isso. O cão abandonado te olha do espelho antes do e durante o affair, se houver affair. Conheço dois casos em que há ambiguidade:
  • a velha dúvida adolescente: "será que vale a pena arriscar esta bela amizade por uma bimba que sabe lá se será bela?" (Neste caso, eu acho que sempre vale!)
  • o triângulo em potencial: gosto de Fulana e sou amigo de Cicrano; Fulana gosta de mim e de Cicrano, mas, em se tratando de uma mulher, é impossível saber quem ela prefere ou por quê. Além disso, dado o que conheço de mim, de Fulana e de Cicrano, eu acho que F. e C. formariam um casal mais feliz do que F. e eu. Entra aí a ambiguidade: obedeço ao meu desejo por F. ou sigo meu bom senso e deixo que F. e C. gravitem naturalmente um para o outro, tirando o meu time de campo?
Conflito moral: diferencia-se da ambiguidade por não haver dúvida, mas, ainda assim, trazer um sentimento de culpa. Eu sei a priori que Fulana e eu nunca seremos um casal e reconheço que existe o risco de ela se machucar na brincadeira, e no entanto persisto na decisão de ter um affair com ela. Ajo (que palavra horrível!) pensando somente em mim, mas este declarado e descarado egoísmo não me impede de sofrer dores morais. Uso o livre-arbítrio que me deu o demiurgo e pago o preço na moeda da culpa. Neste caso, o cachorro que vejo no espelho é aquele que apanhou de seu dono, mas não sabe por qual de suas transgressões foi punido. Ele tem as orelhas murchas, o rabo entre as patas, um olhar desorientado e a memória da delícia que foi roer aquela alpargata e mijar no carpete contra a perna da mesa de centro, sobre a qual alinha-se a família de elefantes.

SAP: é um estado do Gen-X: Síndrome de Ausência de Paixão. O Gen-X com SAP não está carente: não lhe falta um (ou mais!) cobertor de orelhas para aquecê-lo no inverno. Falta-lhe, isso sim, paixão.

Paixão:
    Esquecer os amigos, a mãe e o mundo.
    Querer estar sempre junto, sempre dentro.
    Caminhar de mãos dadas, descobrindo
        um novo azul no céu de Porto Alegre,
        uma nova poesia nas folhas mortas.
    Experimentar nas vísceras a relatividade do tempo.
    Viver, ser uma ponte entre o eu e o ela.
    Enlouquecer, em suma.

Na SAP, o paciente padece de um excesso de sanidade, há razão de sobra para ver e pensar o mundo, e o mundo machuca. O médico:
"Ponha a língua pra fora, diga 'Aaaah';
 Respire fundo, diga 'trinta e três';
 Bem, eu prescrevo um bom porre a cada três dias e uma dieta rica em chocolate…"

Sincericídio: ocasionalmente, pode ser uma coisa espontânea, ceder a um impulso irresistível; a gente esquece bons conselhos de versos famosos, tais como:
    "si quieres ser feliz como me dices,
     no analices, muchacho, no analices", do Joaquín Bartrina, gravados até pela Elis
    e
    "Quero a verdade
     Ou quero amar?", de "Prestes a Voar", Marina Lima/Antonio Cícero, gravados pela própria Marina,
e cai na asneira de dizer ou perguntar a verdade à pessoa amada. Digo "ocasionalmente" porque desconfio que um sincericídio, mais das vezes, não passa de um instrumento de sabotagem: não é um tamanco, mas funciona que é uma beleza pra emperrar a maquinaria do amor. Se alguém precisar de exemplos pra entender o conceito, basta assistir a "Closer": o filme é um sincericídio em cima do outro. Abaixo, uma alegoria:

 

Icharus, by Ken Perkins

Não dá pra dizer que Ícaro cometeu suicídio. Por outro lado, quem em seu perfeito juízo esperaria um bom resultado de asas de penas coladas com cera? (No mito, o voo dá errado porque ele sobe muito, aproximando-se do sol, a cera derrete e ele cai; é uma forma de dizer que a ambição humana de se aproximar dos deuses, hubris, deve ser contida. Na realidade, se ele subisse muito, o frio ia dar-lhe uma fadiga muscular brutal e ele ia despencar do mesmo jeito. Isso sendo legal: na prática, nunca ia voar com aquelas asas de merda.) Da mesma forma, o sincericídio não é necessariamente um "suicídio" da relação, mas a arrogância, a pretensão de que "eu (o meu amor) posso (pode) sobreviver à verdade" só pode ser punida com a separação.

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