quinta-feira, 30 de junho de 2016

Ao Som do Mar da Arábia

O Gil encerra sua apresentação e lentamente vamos deixando o Azad Maidan, embalados pela Indian Ocean Jazz Orchestra (baixo, guitarra de 12 cordas, bateria e percussão), excelente grupo local escalado para fechar a cerimônia de encerramento do Quarto Fórum Social Mundial. Somos 23 cabeças: andamos devagar: não há alternativa para um grupo tão grande. Somos 23 cabeças reunidas pela ONG franco-espanhola Babels (o nome não poderia ser mais bem posto!) para interpretar o Fórum.
Tomamos o trem de Churchgate para Vile Parle separados: os meninos vamos num vagão, as meninas, noutro. Na estação de Vile Parle, descemos do lado oeste, distribuímo-nos em oito tuk-tuks e rumamos para Juhu Beach, onde outro subgrupo de Babels já nos esperava em um café. Aqui acontece o desencontro do grupo: é impossível manter unidas as mais de 30 cabeças que somos agora, quando o café já fechou a cozinha e não vende cerveja.




Tuk-tuks de Mumbai

A dissidência a que me junto quer comida e birras. Erramos por Juhu Beach e Jairo, um galego-judeu do nosso grupo, não nos deixa esquecer do quanto nos parecemos com Moisés e seu povo, quarenta anos no deserto... De súbito, o Napoleão que vinha se debatendo dentro de Laura (como o Alien antes de nascer!) aflora de vez e ela nos guia ditatorialmente para as barraquinhas de "chiringuitos". (Afeiçoei-me tanto a esta palavra...) As barraquinhas estão sobre a calçada e logo onde acaba o pavimento ruge o Mar da Arábia em sua maré alta, as ondas quebrando-se contra o meio-fio.

Antes que eu caia em tentação e coma algo capaz de me liquidar, chegam as cervejas que encomendamos e um emissário da outra dissidência, informando-nos que eles agora estão muito bem instalados em outra barraquinha logo adiante. Assim que os mais bravos terminam seus "chiringuitos", caminhamos pela estreita faixa de praia até aonde está o resto dos babelitos.

Eles estão instalados como marajás sobre tapetes de grama artificial. A maré está baixando, mas metade da pequena roda-gigante ainda está dentro d'água. Queria poder dizer que havia uma lua sobre todo este cenário, mas a verdade é que, com toda a poluição de Mumbai, se havia uma lua, ninguém viu.

Este foi o verdadeiro encontro do grupo: finalmente, não havia mais coordenadores e intérpretes, correndo de sala em sala, enfrentando todo tipo de falha técnica possível e imaginável. Éramos só pessoas de boa-vontade que haviam viajado meio mundo para ajudar outras pessoas igualmente de boa-vontade a se entenderem e este clima era evidente, estava no ar que éramos um grupo de gente boa e isso nos fazia bem, criava um bem-querer natural. Conversamos e rimos, felizes uns pela simples companhia dos outros, ouvindo o Mar da Arábia, que roncava em protestos sua retirada na madrugada.

Os mumbaikars que nos haviam acolhido tão hospitaleiramente queriam dormir: já haviam fechado as barraquinhas e estendido as esteiras em que iam passar a noite, cena comum naquelas terras: as pessoas dormem ao pé de suas tendas de negócio. Entendemos que era hora de tirar o time de campo pela última vez: dissolvia-se o grupo Babels que foi ao Quarto Fórum.

Uma espanhola tinha tanta fome quanto eu e aceitou o convite para omeletes no meu hotel. Comemos, tomamos um absurdo de quatro cervejas mais, conversamos, descobrimos certas ternuras, e ficamos por aí: no meu quarto tinha um babelito, no dela, uma babelita e nenhum quarto vago no hotel. Acompanhei-a ao tuk-tuk que a levaria ao seu hotel, que a levaria de mim, ambos com a tristeza da separação nos olhos. Foi um encontro, não há dúvida, mas os carinhos que não trocamos, o amor que não fizemos, são hoje assunto do corvo do Poe: nunca mais! Subi para o meu quarto resmungando como o Mar da Arábia rugiu sua retirada das areias de Mumbai.
Bruegel, O Velho: A Torre de Babel

terça-feira, 28 de junho de 2016

Listas I

Pontos esquecidos na Declaração de Direitos do Homem:
  • Todo homem tem direito à esperança de um gol aos 45' do 2º tempo.
  • Todo homem tem direito a uma mulher que o resgate de si mesmo.
  • Todo homem tem direito a errar nas suas suposições, tipo: ter a surpresa de ver o boteco encher às onze horas de um domingo chuvoso.
  • Todo homem tem o direito de se pensar eclético e de ser incoerente.



    O que um homem agradece a uma mulher?
    •  Cada amanhecer suave, i.e., cada um em que a solidão não morde.
    •  A maneira gentil como acende um fogo e a maneira solidária e apaixonada como arde no incêndio subsequente.
    • Cada ensinamento sobre a natureza dele que vem disfarçado de insight.
    •  O tempo que lhe sobra para o xadrez e a literatura porque ela se ocupa voluntariamente da louça.
    •  A perspectiva diferente, que às vezes vem tão a calhar.
    •  O frequente renovar-se, sempre refrescando os olhos pouco atentos, e talvez cansados, do seu amado.
    • A infusão de alegria e de autoconfiança que ministra ao seu amante quando a ele se entrega.

    Belas Artes

    Este texto me saiu depois de visitar o Museum of Fine Arts de Boston. Uma de suas relíquias mais preciosas é uma estatueta minóica de mais ou menos 1500 A.C.

    Estatueta de marfim, hoje encapsulada, protegida por vidro e alarme, líquido disfarçado e elétrons corredores, açoitados ou atraídos (depende sempre do referencial...) pela diferença de potencial entre duas pontas de um circuito que até o toque inocente de mão infantil pode fechar, ontem foste aviltada: roubaram-te os adereços de ouro quase todos: perdeste teu diadema, que era disco solar, teu cinto, marca limítrofe à borda das partes baixas, e os botões que guardavam os bicos dos teus seios nus. Deusa sensual, foste tocada. Deixaram-te as duas serpentes douradas, espirais vivas: te enfeitam e te miram com adoração e suspeita: a prudência característica da serpente.
               
    Anteontem foste lascas de marfim que algum mercador levou do norte da África para a ilha mágica e próspera de Creta, onde a mão habilidosa do artesão desenhou formas complementares. Pregos de ouro fizeram-te una, e tesuda.
               
    Antes disso, foste elefante, monarca da savana e, mesmo marfim, secreção, tecido morto, eras parte de algo vivo e social — eras mais feliz!
               


    O museu guarda também muito dos japas: é a maior coleção de arte nipônica fora do Japão. Armaduras e espadas, coisas desta coisa estúpida que é a guerra. Propósitos vis, formas pensadas e trabalhadas arduamente para não falharem em seus desígnios. Felicidade das coisas mortas: não se discute sua teleologia, a ligação entre intenção e função, cujo elo evidente é a forma. Triste quando o propósito da coisa morta, em sua forma acabada, é mutilar a matéria viva...
               
    Compensam os budas? Pode a busca de harmonia e iluminação, personificada nesses ícones serenos, contrabalançar a intenção demoníaca, porém fria, da tachi e da katana?
               
    Estas reflexões ainda faziam seu caminho de anizaki, ricocheteando de sinapse em sinapse, quando cheguei aos impressionistas. Repetição: compensa a joie de vivre do par de Renoir as dúvidas amargas de Gauguin e do resto da humanidade, as perguntas essenciais que nos fazemos desde que deixamos as árvores, jogadas sobre uma ontogenia taitiana? Apaga o abraço ardente do casal de Rodin as cores desesperadas de um dos últimos quadros de Van Gogh, pintado semanas antes do suicídio?
               
    E nada disso desaparece ao sair do museu e passar pelo índio, corcovado a cavalo: braços de súplica ou rendição? Prece a Manitu? Trop tard, mon ami — la musée ferme à cinque heures, les bon sauvages sont morts ou foutis, que no es lo mismo, pero es igual.



    segunda-feira, 27 de junho de 2016

    A Condição Humana

    O filósofo e escritor espanhol Ortega y Gasset dizia: “O homem é o homem e suas circunstâncias”. Acho adequado começarmos por aqui, até porque o que segue é mais um agregado de citações e de ideias de outros do que um produto original meu; digamos que eu vou fazer uma colagem.

    Então, o homem é o homem e suas circunstâncias, mas ainda este homem do filósofo pode ser aberto em dois. Gosto da expressão em inglês: “nature versus nurture”. Discordo é do “versus”, acho que deveria ser “and”, porque somos produtos de nossa genética e da nossa criação. O debate expresso no “versus” me parece secundário: importa muito pouco se certa característica de uma pessoa foi mais influenciada por seu genoma ou por sua criação. Só que aí implico com a minha própria tradução: não gosto de “criação”, porque se poderia interpretar como “educação”, ou seja, o conjunto das experiências pelas quais os outros, pais, parentes e professores, consciente e voluntariamente, nos fazem passar, enquanto eu acho que o sentido precisa ser muito mais amplo: deve englobar todas as experiências que vivemos primeira na infância, as boas e as traumáticas, as que nos proporcionaram por quererem e as que aconteceram a despeito de tudo e de todos.

    Ainda neste tema da criação, vale lembrar a frase atribuída aos educadores jesuítas: “Mostra-me o menino aos sete anos e eu te mostrarei o homem.”, ou coisa muito parecida. Bem ou mal, estamos com a personalidade e o caráter formados nesta tenra idade. O resto da vida servirá para deformações e vernizes, mas não passará muito disso.

    Eu acho a natureza humana essencialmente boa. Se eu não pensasse assim, não teria feito as viagens solitárias que fiz, de moto, de bicicleta pelo sul do mundo ou de carro. E sempre encontrei pessoas dispostas a me ajudarem em troca do nada que é um “muito obrigado”. Honestamente, não vejo debate aí: o homem é essencialmente bom, altruísta, e é preciso que algo dê muito errado em sua genética, o que é simplesmente improvável, ou em sua criação, o que, infelizmente, com o desmanche das famílias e das escolas públicas, é cada dia mais comum, para que ele se torne um criminoso.

    Em janeiro de 1988, fui fazer um estágio em uma estação de larvicultura de camarão da UFSC em Florianópolis. Eles ainda estavam construindo extensões do prédio principal e para isso contavam com o auxílio de três presidiários como pedreiros. A estação fica na Barra da Lagoa, longe do centro e da universidade, mas o presídio fica perto da universidade e todos moravam aí por perto, então íamos todos juntos para a estação de manhã e voltávamos juntos à tardinha. Éramos três professores, eu e os três presos numa caminhonete cabine dupla apelidada de Trovão Azul. Não quero deixar os três presos assim, sem nome nem rosto. Havia Seu Tatu, o mais velho deles, cumprindo pena por homicídio. Na verdade, Seu Tatu, que era pequeno proprietário e agricultor no interior do estado, foi preso por ser burro: numa disputa com um vizinho, foi jurado de morte e, ao invés de esperar o outro tomar uma atitude e se defender, ou de matá-lo numa tocaia, Seu Tatu foi à polícia e avisou: “ele me jurou de morte e eu vou pegá-lo antes que ele me pegue”. E pegou. E aí não teve desculpa nem defesa, foi condenado por homicídio premeditado. Tem outro cujo nome eu não lembro, mas lembro que era sujeito grande, mais para negro, traficante de maconha que num tiroteio com a polícia deu o azar de matar um policial. O terceiro era o Arroz, homicida também, só não sei em que circunstâncias cometeu o crime, mas era consenso que o Arroz não batia bem, era meio maluco, e que nele a gente devia manter um olho. Eles tinham seu trabalho de pedreiros e nós tínhamos o nosso, mas convivíamos em dois momentos: a hora da melancia, aí pelas quatro da tarde, e o futebol à tardinha. Conversávamos comendo melancia e depois batíamos bola, mas ninguém batia em ninguém. Justamente o negro, por ser tão grande, tomava muito cuidado para não machucar ninguém. Desde esta experiência, sou radical e veementemente contra a pena de morte. E não sei, mas acho que, se não também o Arroz, que não batia muito bem, podia ter um problema genético, sei lá, pelo menos os outros dois eram essencialmente bons, apesar de homicidas. Quem sabe um detalhe não teria feito a diferença?
       
    Então, se até nestes três condenados por homicídio eu “levo fé”, nem adianta discutir sobre o resto da humanidade: acho mesmo a natureza humana essencialmente boa. Falta, então, falar do outro componente humano, o que o Ortega y Gasset chamava de “circunstâncias”. Quero aqui tirar do baú outra expressão velha, a “condição humana”. E aqui não tem jeito, não consigo ver um quadro positivo: acho a nossa condição desgraçada. Para começo de conversa, como resultado da nossa evolução, somos animais conscientes de nós mesmos, ou seja, nós e poucos outros primatas nos reconhecemos no espelho. Em segundo lugar, o que é mais grave: somos a única espécie consciente da própria mortalidade: até prova em contrário, o homem é o único animal que sabe que vai morrer.

    Neste quadro que pintei, e que eu não diria nem de longe que é completo, ou mesmo satisfatório, acho que o que determina como administramos esta relação complicada entre uma natureza boa e uma condição desgraçada é a criação que vivemos. Digamos que nos extremos opostos deste conflito estariam o homicídio e o suicídio. Supondo que o sujeito encontre um ponto de equilíbrio nesta escala, o que, aliás, é o mais comum, afinal a maioria de nós nem se mata nem mata o semelhante, abre-se a possibilidade daquilo que foi chamado de se atingir um estado evoluído, e que eu chamaria de atingir um estado mais zen, e que não é mais do que perceber com uma clareza que prescinde das palavras quais são as coisas realmente importantes na vida.
       
    As circunstâncias do espanhol, no entanto, não se restringem ao que eu chamei de condição. Acho que ele também se refere ao que poderíamos resumir com o nosso ditado: “A ocasião faz o ladrão”. No sentido, também, de que circunstâncias extraordinárias fazem pessoas normais reagirem de maneiras em que nem elas se reconhecem. Num exemplo pessoal, nas duas vezes em que tentaram me assaltar, eu reagi antes de perceber o que estava fazendo e os pivetes, que felizmente estavam desarmados, saíram de mãos abanando, sem que ninguém tenha se machucado. Numa hipótese extrema, acho que ninguém pode saber como se comportaria no inferno de um campo de extermínio, seja como algoz, seja como vítima. Não fomos feitos para estes extremos.

    Eu diria ainda que a nossa condição, por si só, tem tudo para nos deixar doidos. Quem sabe o sentimento religioso não é senão uma maneira de administrar a angústia de saber que vamos morrer? E quantas loucuras já foram e estão sendo cometidas sob o manto de uma religião ou outra… Contra esta angústia, temos a opor a nossa natureza, que é essencialmente boa, solidária. Juntos, por estarmos ou por nos sentirmos juntos, é que administramos esta e outras barras pesadas. Num exemplo recente, o meu xará Eduardo Galeano foi desencavar a crise dos exilados do Sahara Ocidental. Quem no mundo sabe ou lembra que eles existem? Esta solidariedade de um uruguaio a um povo do qual ele provavelmente não conhece ninguém é um exemplo disso, de estarmos juntos contra as maldades do mundo, seja um terremoto na Indonésia, sejam as injustiças da monarquia do Marrocos contra uma nação mais fraca. O problema, no caso do Galeano e de tantos outros como ele, é o efeito colateral: será que um uruguaio precisa se angustiar pela sorte de uma nação do Sahara? Será que ele não está apenas aumentando a sua já pesada bagagem de angústias?
       
    Tentando concluir e simultaneamente tentando não passar receita, acho que vai e vem e caímos numa receita budista: mais aceitação. Aceitar a condição humana. Aceitar o sofrimento que nos toca. E não andar por aí, como Galeano, procurando mais. O caminho do meio é simplesmente o conselho do nem oito, nem oitenta. Vamos juntos, vamos com calma, e iremos bem. Não sei, isso seria outro assunto, para onde vamos, mas a estas alturas importa mais ir bem do que ir para um lugar definido.

    domingo, 26 de junho de 2016

    Guardanapos II

    O homem branco sou eu, o homem branco é você. Somos nós que tememos nossas faxineiras: vão roubar aquelas abotoaduras inúteis, estragar o controle remoto do videocassete, desafinar o piano. Nós não evoluímos: ainda vemos os outros, os não-brancos, os não-urbanos, os não-graduados, os sem-teto, os sem-terra, como selvagens. Damo-lhes pão e circo: merenda escolar e direito a voto. Encenamos nossa farsa de igualdade, mas não entendemos nada de fraternidade. Somos primitivos.

    ***

    Jazigo de família é como um cinema com um filme ruim: quem chega primeiro pega os melhores lugares, mas quem chega por último estava aproveitando melhor a vida!

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    Se de alguma forma estúpida realmente somos nós mesmos e nossas circunstâncias, então se justifica que busquemos tanto circunstâncias absurdas.

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    Mãe é como capacete: quanto mais protege, mais pesa no cangote.

    sexta-feira, 24 de junho de 2016

    O Urso Panda

    E aí teve um dia em que eu não resisti e voltei a escrever como criança...

                                                                   O Urso Panda

    O urso panda é um urso mais baixo e mais gordo que os outros ursos. Ele é da cor da zebra, mas as manchas pretas não são listras, elas são mais parecidas com as marcas que ficam na camiseta quando a gente joga bola no barro.

    Fora dos zoológicos, hoje só tem urso panda na China. Os chineses cuidam dos ursos e se alguém caça um urso panda, eles caçam o safado e dão um tiro nele. Diz que chinês, muitas vezes, prefere dar um tiro no bandido do que pôr na cadeia. Meu pai diz que é pra não ter que gastar comida com marginal, mas eu não sei, acho que é porque eles têm pena mesmo de ver as pessoas enjauladas, que nem bicho. Eu, eu mesmo, não gosto de ver nem bicho enjaulado. Um dia, vi no Faustão um urso panda que agarrou um japonês no zoológico e arrancou a jaqueta dele: só pode ter sido de brabo por estar enjaulado, porque o japonês não tinha feito nada pro urso, tava só tirando retrato, coisa que japonês adora fazer.

    Eu também vi na TV que as pessoas estão preocupadas se os ursos panda vão se acabar ou não. O primeiro problema eu entendi: o urso panda é muito chato pra comer, que nem o meu irmão: ele só gosta é de umas folhas de bambu, e o meu irmão só gosta de guisadinho de vagem com arroz. Só que as folhas de bambu tão se acabando na China, porque os chineses tão desmatando muito. O outro problema eu não entendi direito: diz que os ursos panda têm falta de libido. Eu até fui procurar esta palavra no dicionário, mas não tenho certeza se entendi bem. A impressão que eu fiquei é que o urso panda não é lá muito chegado nas ursas. Acho que esse urso não é espada. Aí ele não faz ursinhos como devia.

    Eu acho o urso panda um bicho bacana, ainda mais quando ele agarra o japonês, arranca a jaqueta e dá-lhe um susto que o cara deve ter se borrado todo! Minha irmã diz que é um bicho "muito fofo". E os chineses até tentam tomar conta dos seus ursos. Eu só não gostei foi da história da tal de libido. Se esse urso é meio boiola mesmo, aí tem mais é que ir pra extinção.

    quinta-feira, 23 de junho de 2016

    Profundidade e Perigo

    O que determina, como se mede a profundidade de uma relação? Acho que a profundidade aumenta à medida em que uma pessoa se envolve com o círculo da outra: seus pais, seus filhos, seus amigos.

    O aumento da profundidade aumenta os riscos, o perigo de nos machucarmos, que corremos numa relação? Num mergulho, por razões que pertencem à Física e à Fisiologia, o aumento da profundidade é como o aumento da velocidade de um carro: mergulhar a 40 m é muito mais do que duas vezes mais perigoso do que mergulhar a 20 m, assim como dirigir a 180 km/h é desproporcionalmente mais perigoso do que dirigir a 90 km/h. E na relação? Acho que não é assim. Só acho que a maior profundidade torna mais difícil terminar a relação, da mesma forma que é mais difícil subir de um mergulho a 40 m do que de um a 30 m, mas pode ser feito com segurança.

    Os riscos da relação são mais parecidos com os perigos do trânsito: a outra pessoa pode ser atropelada por um ex-namorado, ou pode trombar com uma pessoa muito mais interessante, ou pode simplesmente capotar sozinha, sem o envolvimento de terceiros. Os dois primeiros casos acabam em traição, e é preciso muito jogo de cintura e muito divã para que um acidente desta natureza não termine com a relação. O outro pode ser um caso de sabotagem, de sincericídio ou simplesmente de desencanto: a quebra daquela imagem da pessoa que se tinha lá no começo, na fase da paixão. Se a relação sobrevive ou não ao desencanto pode até depender da profundidade que se atingiu…

    Solidão

    Potiguares
    Imagino-me um potiguar. Vejo sumirem no horizonte os mastros da nau francesa e penso: "Que pobre deve ser esta gente, que vem de tão longe (tão longe que nunca os vimos antes, tão longe que não conseguiram me explicar de onde vêm) para trocar conosco uns paus que por aqui são mato por umas quinquilharias que não nos servem pra nada. Por pobres que sejam, no entanto, fiquei com vontade de ir com eles: seu chefe não tem um olho e eu vi outro que, como eu, não tem uma perna inteira. Quem sabe entre os brancos eu seria apenas mais um a quem lhe falta um pedaço... Aqui na nossa tribo, minha vida não é fácil, e não é só porque me falta metade de uma perna. Meu primo Poty perdeu um braço na guerra com os cariris e todos o respeitam; de mim, todos riem, porque a meia perna que me falta foi comida por uma tintureira naquela noite em que, sem saber que ela estava presa entre os bancos de areia que se formam na foz do rio mau (não é à toa que o chamamos de Paraíba), entrei na água para banhar-me com Jacy."

    (Imagino-me outro potiguar. Penso: "Como mudou nossa vida, desde que esses brancos apareceram para comerciar conosco: eles vêm sabe-se lá de onde e em troca desta madeira que não nos serve pra nada nos deixam ferramentas de um gume, de uma resistência tais que nos permitem fazer em minutos coisas que antes nos consumiam horas... Além de nos presentearem com uns penduricalhos que nos ajudam a rir uns dos outros, o que, pra nós, é muito importante.")

    Sequelas
    Termino de ler "Sul", a história da famosa expedição de Shackleton à Antártida em 1914-16, escrita por ele mesmo. Desentendo o que levou aqueles homens a correrem os riscos, a pagarem o preço que o Polo deles exigiu.

    Misturando
    Meu primeiro potiguar imaginário e os homens de Shackleton têm em comum as marcas que a má sorte pode deixar no corpo. Não me aconteceu. Apesar de tantos quilômetros rodados de moto e de alguns acidentes de carro, nada de sequelas.

    A casca grossa que carrego não pode ser chamada de sequela, é só um subproduto da solidão, esta maneira de viver só. As cicatrizes são marcas das tentativas de sair da solidão: é quando o bicho sai da concha que ele corre perigo...

    Flutuando à deriva em um bloco de gelo, não há nada que não valha a pena tentar pra se salvar; da mesma forma, quando a solidão aperta, não há nada que a gente não tente, porque há muito pouco a ser perdido. O explorador caminha com os pés em ferida contra uma nevasca, porque é isso ou a morte; o sujeito vai de boteco em boteco, com o coração que é uma passa de uva, porque é isso ou a certeza do apê vazio.




    Frank Hurley, o fotógrafo da expedição, registra o momento em que o Endurance, destruído pelo gelo, finalmente começa a afundar.

    quarta-feira, 22 de junho de 2016

    A Terra dos Sabonetes Anões

    Não se trata de uma terra lendária, ela existe no coração de Porto Alegre e é habitada por um ogro, El Gordo, e uma criatura mitológica, Tião, que é filho de Caos com Entropia.

    Na Terra dos Sabonetes Anões, El Gordo tenta contrapor-se à degeneração gradual e implacável do ambiente, da qual a existência e as atividades de Tião são meramente uma faceta, através da economia e da acumulação; ao ver que tudo vai se desgastando, o ogro passa a poupar o que pode e a guardar tudo o que pode vir a ter alguma utilidade, por remota que seja essa possibilidade.

    É este estado de espírito do ogro gordo que leva à existência dos sabonetes anões que dão nome a esta ilha de desordem combatida no meio da desordem generalizada da cidade. Os ataques de Tião, que fazem com que objetos desapareçam, são raros e na maior parte das vezes é possível recuperá-los sem precisar acender uma vela pro Negrinho, mas é visível que seus pais bailam enlouquecidamente em cada canto da Terra dos Sabonetes Anões.

    Nesse estado de coisas, parece razoável que a Terra dos Sabonetes Anões seja a Fortaleza da Solidão d’El Gordo — é um espaço muito seu e muito para si, onde a presença de outrem é sempre uma cara exceção à regra.

    Tirinhas

    Na vida toda, só me saíram duas:







    terça-feira, 21 de junho de 2016

    Guardanapos I

    Esses textos têm esse nome porque os primeiros, que talvez ainda estejam por aqui, nos meus arquivos intermináveis, foram mesmo escritos, circa 1987, em guardanapos daqueles bagaceiros, espalha-graxa, de uma pizzaria (Forno?) que ficava, salvo engano, perto da esquina da Dom Bosco com a Cristóvão Colombo, lá no Rio Grande; toda e qualquer ajuda de um leitor papareia para precisar o nome e o lugar dessa pizzaria seria mais do que bem-vinda! Mais adiante, quando além de caneta passei a andar com papel no bolso, os Guardanapos passaram a ser escritos em papel menos miserável, porém todos foram escritos em botecos e afins, com YT muito provavelmente mais pra lá do que pra cá!

    YT conhece palavras feias que ele não precisa esquecer, mas tampouco deveria lembrar delas a essas horas, quando vê passar uma menina: “prognata” e “exoftálmica”!


                                                                      ***

    ¡La buena leche que te entra cuando te sale la leche!

                                                                      ***

    Quando possível, convém esperar que os peidos se separem da bosta!

                                                                      ***

    O caminho do zen-budismo não é fácil, até porque às vezes vêm uns elefantes na contramão, e eles vêm fugindo de um tsunami!

                                                                     ***

    No contexto de como as gaúchas são mais difíceis do que outras brasileiras:

    Em Porto Alegre, Sísifo empurra a pedra de costas!

                                                                    ***

    No contexto de estar sozinho no boteco:

    Não necessariamente é a solidão que é uma merda: a não-conexão é muito pior!

    Divagações I

    Pensando na Thaís, vão aqui dois textículos que ela ainda não conhece.

    É comum ficar com a mente muito ativa embaixo do chuveiro, para o bem ou para o mal... Essa maluquice me veio em Cristalina, GO:

    Seguindo uma longa associação de ideias que começou pelas excelentes “Crônicas Marcianas” do Ray Bradbury, pensei que os roteiristas dos filmes do Shrek tiveram muito colhão, porque eles pegaram trocentos personagens de contos de fadas e os fizeram coadjuvantes do ogro! E aí veio o pensamento seguinte: não usaram seu personagem para cumprir o papel de assustar as crianças, coisa que muitos contos de fadas fizeram e que, segundo alguns psiquiatras, foi bom para elas, por lhes ensinarem o medo, até dentro de casa: a madrasta, o pai abusador... Já viajando na verdadeira maionese (saudade do Nico!), lembrei de “Hansel und Gretel”, a ópera para crianças a que os pais alemães fazem questão de levar seus filhos: é só lembrar que a bruxa está esperando apenas que Joãozinho engorde para cozinhá-lo! Assim, Shrek cumpre só metade do que faz um bom conto de fadas: passa uma lição de moral, mas sem para isso recorrer ao medo. Enfim, provavelmente não faria o mesmo sucesso comercial se o fizesse...

    ***

    A volta de Jimi Hendrix tem tudo para ser mais interessante do que a volta de Cristo: Jimi reabrindo o Electric Ladyland e finalmente tocando para o ar todos aqueles sons que viviam aprisionados na sua cachola, enquanto Cristo ia fazer o quê?
    Açoitar que classe de vendilhões do templo, se eles se dispersaram e diversificaram tanto?
    Repetir o mesmo sermão da montanha, que já não colou da primeira vez, ou partir pro esporro do morro?
    Montar um grupo infanto-juvenil, tipo Jonas Brothers, pra tentar conquistar corações e mentes enquanto são novinhos?
    Partir logo pro juízo final, com cobertura da Court TV em pay-per-view?

    segunda-feira, 20 de junho de 2016

    Definições

    Começando pelo começo, algumas definições:

    Solidão interessante: esse é mais um conceito do genial Rodrigo Najar. Refere-se àquelas noites em que o cara fica sozinho em casa, põe sua música preferida, abre um bom livro pra reler, ou rabisca umas maltraçadas pensando na vida, dando graças por não ter ninguém no seu pé. Dá até pra desligar o celular.

    Sabotagem: o mau hábito de sabotar as relações com pessoas que nos ameaçam, i. e., que ameaçam nos machucar muito se nos deixarem, porque gostamos muito delas. Mal comparando, é a lógica do Tenório Cavalcanti, o Homem-da-Capa-Preta: "antes que tu me jante, eu te almoço!" A diferença é que a gente não almoça (a gente não dá o pezão antes de levá-lo), a gente sabota a relação até o outro dizer que "assim não dá mais", porque então é justa causa: se o outro não tem coragem de encerrar, a gente se encarrega de fazer o serviço sujo. Aí nego fica uns dias vendo no espelho aquela cara de cusco sem dono, de guaipeca perdido, até que passa.

    Ambiguidade: chamo assim aquela situação em que ficamos genuinamente divididos, com dois corações, e sofremos por isso. O cão abandonado te olha do espelho antes do e durante o affair, se houver affair. Conheço dois casos em que há ambiguidade:
    • a velha dúvida adolescente: "será que vale a pena arriscar esta bela amizade por uma bimba que sabe lá se será bela?" (Neste caso, eu acho que sempre vale!)
    • o triângulo em potencial: gosto de Fulana e sou amigo de Cicrano; Fulana gosta de mim e de Cicrano, mas, em se tratando de uma mulher, é impossível saber quem ela prefere ou por quê. Além disso, dado o que conheço de mim, de Fulana e de Cicrano, eu acho que F. e C. formariam um casal mais feliz do que F. e eu. Entra aí a ambiguidade: obedeço ao meu desejo por F. ou sigo meu bom senso e deixo que F. e C. gravitem naturalmente um para o outro, tirando o meu time de campo?
    Conflito moral: diferencia-se da ambiguidade por não haver dúvida, mas, ainda assim, trazer um sentimento de culpa. Eu sei a priori que Fulana e eu nunca seremos um casal e reconheço que existe o risco de ela se machucar na brincadeira, e no entanto persisto na decisão de ter um affair com ela. Ajo (que palavra horrível!) pensando somente em mim, mas este declarado e descarado egoísmo não me impede de sofrer dores morais. Uso o livre-arbítrio que me deu o demiurgo e pago o preço na moeda da culpa. Neste caso, o cachorro que vejo no espelho é aquele que apanhou de seu dono, mas não sabe por qual de suas transgressões foi punido. Ele tem as orelhas murchas, o rabo entre as patas, um olhar desorientado e a memória da delícia que foi roer aquela alpargata e mijar no carpete contra a perna da mesa de centro, sobre a qual alinha-se a família de elefantes.

    SAP: é um estado do Gen-X: Síndrome de Ausência de Paixão. O Gen-X com SAP não está carente: não lhe falta um (ou mais!) cobertor de orelhas para aquecê-lo no inverno. Falta-lhe, isso sim, paixão.

    Paixão:
        Esquecer os amigos, a mãe e o mundo.
        Querer estar sempre junto, sempre dentro.
        Caminhar de mãos dadas, descobrindo
            um novo azul no céu de Porto Alegre,
            uma nova poesia nas folhas mortas.
        Experimentar nas vísceras a relatividade do tempo.
        Viver, ser uma ponte entre o eu e o ela.
        Enlouquecer, em suma.

    Na SAP, o paciente padece de um excesso de sanidade, há razão de sobra para ver e pensar o mundo, e o mundo machuca. O médico:
    "Ponha a língua pra fora, diga 'Aaaah';
     Respire fundo, diga 'trinta e três';
     Bem, eu prescrevo um bom porre a cada três dias e uma dieta rica em chocolate…"

    Sincericídio: ocasionalmente, pode ser uma coisa espontânea, ceder a um impulso irresistível; a gente esquece bons conselhos de versos famosos, tais como:
        "si quieres ser feliz como me dices,
         no analices, muchacho, no analices", do Joaquín Bartrina, gravados até pela Elis
        e
        "Quero a verdade
         Ou quero amar?", de "Prestes a Voar", Marina Lima/Antonio Cícero, gravados pela própria Marina,
    e cai na asneira de dizer ou perguntar a verdade à pessoa amada. Digo "ocasionalmente" porque desconfio que um sincericídio, mais das vezes, não passa de um instrumento de sabotagem: não é um tamanco, mas funciona que é uma beleza pra emperrar a maquinaria do amor. Se alguém precisar de exemplos pra entender o conceito, basta assistir a "Closer": o filme é um sincericídio em cima do outro. Abaixo, uma alegoria:

     

    Icharus, by Ken Perkins

    Não dá pra dizer que Ícaro cometeu suicídio. Por outro lado, quem em seu perfeito juízo esperaria um bom resultado de asas de penas coladas com cera? (No mito, o voo dá errado porque ele sobe muito, aproximando-se do sol, a cera derrete e ele cai; é uma forma de dizer que a ambição humana de se aproximar dos deuses, hubris, deve ser contida. Na realidade, se ele subisse muito, o frio ia dar-lhe uma fadiga muscular brutal e ele ia despencar do mesmo jeito. Isso sendo legal: na prática, nunca ia voar com aquelas asas de merda.) Da mesma forma, o sincericídio não é necessariamente um "suicídio" da relação, mas a arrogância, a pretensão de que "eu (o meu amor) posso (pode) sobreviver à verdade" só pode ser punida com a separação.