domingo, 7 de agosto de 2016

Verbetes IV

Querência
O casal se apaixona: são semanas em que o mundo se perde num plano de fundo diáfano, difuso, como uma cena de batalha que há num quadro de Navarrete, o Mudo, que está no Escorial.

Depois o fogo abranda, já não há tanta urgência de estar junto, de estar dentro. Continua um enorme interesse pelo outro, com aquela vontade de conversar e de compartilhar. Casam-se e enfrentam as crises que os anos trazem: frustrações, pequenas infidelidades, filhos problemáticos. Trinta anos depois, ainda estão juntos.

Sei lá se esses dois encontraram o amor (sei lá o que é o amor). Acho que se encontraram, que um é querência para o outro: o espaço na cama, o cheiro no ar, certos ruídos cotidianos. O ombro amigo, o ouvido do confessor. Podem ficar em Porto Alegre, fazer doutorado em Yale ou trabalhar em Xangai — não é uma questão de geografia: o companheiro é a sua querência, da qual conhece todo o relevo e até as intempéries do clima.

Juntos até que a morte os separe. Só que aí não é a perda da companheira, é toda a querência que some: não há chão para pisar nem ar para respirar. Não é à toa que tantos velhinhos definham e finam-se, quando lhes morre o cônjuge: vão fazer o quê neste universo estranho que de súbito os traga?

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